Foto: FMagalhães
Foto: FMagalhães

                                                                               O inferno está vazio.

                                                                                Todos os demônios estão aqui.

                                                                                                            William Shakespeare

Era uma vez um domingo ensolarado de inverno. Fui convidado a participar de uma mesa-redonda num festival da juventude que seria realizado numa antiga fábrica em São Paulo. Mais de mil jovens: skatistas, bikers, b-boys, grafiteiros. Esse lugar, hoje, é um espaço cultural dos paulistanos, mas por muito tempo foi a Casa das Caldeiras, que gerava energia para as indústrias Matarazzo.

Cheguei cedo buscando respirar aquela atmosfera alegre e jovem.

Queria explorar também os escuros labirintos de porões e túneis daquela estranha construção. Caminhei até um foco de luz irresistível, alguns metros à minha frente, mais que 50 menos que 100. A luz vinha de cima e um vento soprava de baixo. Vento e luz, um misturando no outro. Olho para cima e vejo, através de uma abertura circular, o azul do céu.

Eu estava na base de uma gigantesca chaminé.

Descobri que as chaminés têm aquele formato para criar um fluxo de ar ascendente, suficientemente forte para que os cabelos fiquem espetados para cima e que as bochechas tremam.

Descobri também uma bela metáfora para a minha contribuição na mesa-redonda, que aconteceria dali a alguns minutos.

O meu objetivo era contagiar a plateia com o entusiasmo de sonhador profissional, falar da força dos sonhos para jovens de qualquer idade – porque juventude, muito mais do que um dado cronológico, é sinal de vitalidade psíquica, de criatividade. Há velhos de 30 anos e jovens de 80.

Os sonhos bem sonhados têm essa força, produzem um fluxo energético ascendente capaz de transformar a realidade. Agregam novos sonhos individuais aos pré-existentes, fortalecendo ainda mais o fluxo por ser expressão de um crescente coletivo.

O objetivo foi alcançado.

Mas o tempo foi passando. Dias, meses, anos. Desde aquele domingo até esta crônica.

Como disse certa vez o Fernando Gabeira, os tempos são difíceis para sonhadores da paz.

O problema é que, dependendo das contingências e dos ressentimentos, esse vento que sopra de baixo também traz o fedor do enxofre, dos demônios psicológicos mais primitivos e violentos. Então o sonho vira pesadelo.

Mohamed Bouhlel não era apenas um lobo solitário e reverente ao Estado Islâmico ao matar toda aquela gente em Nice, era o próprio monstro humano devorando-se a si mesmo. 

Escolhi a frase do William Shakespeare como epígrafe para este texto.

Tremi ao pensar que poderia ter escolhido a mesma frase como epitáfio de uma lápide, num sinistro domingo de inverno, lamentando o fim de um projeto tão ousado quanto impossível:

Aqui Jaz a Humanidade.


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