A morte é uma coisa tão antiga… certamente já não há nada de novo a dizer sobre ela. Ainda assim, visitante sempre incômodo, ela se impõe de tempos em tempos à nossa atenção.
Aconteceu de nestes dias vir bater perto de mim.
Participar dos ritos fúnebres, da vigília e da despedida, proporciona matéria ao pensar.
Quem o fizer num ambiente islâmico de língua árabe, ouvirá muito provavelmente uma frase que sempre atiçou minha curiosidade: almautu haq.
A primeira palavra significa literalmente “a morte”. E sobre o que seja a morte não há grande dúvida, ainda que sobre as implicações da coisa não se possa dizer o mesmo.
Haq, no entanto, é uma palavra que pode ter mais de um sentido e, posto que na expressão ela qualifica a morte, gera dúvida sobre o significado da frase.
A tradução mais automática para haq é “direito”, significando o que conhecemos como direito subjetivo, o contrário de uma obrigação. O seu plural huquq, direitos, é onipresente no jargão jurídico em língua árabe.
A ideia da morte ser um direito, que era como eu entendia a frase, tinha para mim um tom poético e me fascinava: assim, tendo entrado nesta vida sem consulta, e tendo passado por ela e por suas dores, sair dela seria um direito, um merecimento, uma prerrogativa inviolável, um prêmio final.
Desta última vez – no sentido de mais recente, desnecessário dizer – pareceu-me ser especialmente verdadeiro que a morte fosse um direito. Eu pensava que um homem doce, gentil, generoso, alegre, estava autorizado a exercer enfim o direito de se retirar, depois de alguns anos de sofrimento e de dores várias.
Descobri então que o sentido mais provável, mais lógico e provavelmente o único correto, para haq, nessa expressão tirada do Alcorão, é o da inevitabilidade, de certeza solitária, de única coisa não passível de negação ou de falsificação (sim, não há nada de novo a dizer sobre a morte).
Dissipou-se um pouco da poesia… Mas é uma inevitabilidade por vezes desprovida de senso de timing.
Gosto muito de uma fórmula, familiar pelo que sei, sobre a noção de tempestividade das coisas: antes da hora não é a hora e depois da hora não é a hora.
A morte algumas vezes arrasta os pés e chega apenas como remédio muito tardio para quem sofre. Outras tantas chega cedo demais e ousa levar quem ainda não viveu. A morte é da natureza, mas queremos dizê-la nessas horas antinatural, contrária às leis do mundo.
Recentemente, essas ondas cíclicas da informação nos trouxeram de novo a imagem e a notícia do menino Aylan que desaguou na praia. Cedo demais.
Ao mesmo tempo, contou-se entre nós a história de um pai que jogou seus filhos da varanda e a história de outro pai que pulou com o filho da janela do alto prédio. Se o antinatural se devesse expressar por uma única imagem, seria certamente algo parecido com isso.
Nessas horas, a inevitabilidade se apresenta como tragédia.
E alguém nos conta então que mais de 400 crianças, que não saberíamos nomear, morreram tentando a mesma travessia que vitimou Aylan. Por alguma razão essas mortes anônimas, distantes, não nos machucam do mesmo modo. Precisaríamos acordar um pouco para senti-las.
A morte é agora uma estatística, uma inevitabilidade desprovida, quer de poesia, quer de tragédia.
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