O filósofo francês – quase brasileiro – Francis Wolff abriu nesta semana a série de conferências Mutações 2016 – Entre dois mundos, iniciativa do Sesc programada para São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Brasília e Salvador.
Falou sobre a amizade, tema que se distancia das demais questões que compõem o programa – versado basicamente nas mutações que ocorrem em praticamente todas as áreas da atividade humana neste nosso tempo.
No entanto, ele fugiu de uma pergunta que colocava suas reflexões no contexto brasileiro atual: como uma crise política pode romper amizades (eram mesmo amizades?) e como o contexto sócio-político pode penetrar nas relações íntimas e privadas entre duas pessoas?
Wolff teria suas razões para se desviar da questão, mas pode-se imaginar que esteja se tornando um pouco brasileiro, ou seja, gingou para um lado, para outro, e deixou para lá. Fez que foi e acabou não fondo.
No entanto, não é possível escapar do efeito dessa crise política sobre a vida privada. Não apenas porque o resultado dela vai afetar todas as pessoas que vivem neste país, mas também porque ela envolve paixões, desejos, muita desinformação e demonstra o poder da mídia sobre o cidadão comum.
Mas o jogo ainda não terminou. No momento em que anotamos estas observações, um recurso ardiloso mas pleno de significado, interposto junto ao Supremo Tribunal Federal pelos advogados da presidente Dilma Rousseff, pode anular o processo do impeachment. E as possibilidades jurídicas ainda não se esgotariam aí.
Acontece que, em torno da disputa política, formou-se um complexo de opiniões sem base racional que se misturam a ponderações de especialistas no caldeirão de palavras e imagens que compõem o sistema de informações em que estamos imersos.
Desde que o jornalismo se tornou refém da cultura de massa, pela mistura de interesses nos grandes conglomerados de mídia, perdeu-se o limite entre a linguagem supostamente objetiva da imprensa tradicional e a ficção pura e simples inspirada em interesses corporativos. Tornou-se mais fácil praticar e justificar moralmente a manipulação da realidade.
Esse fenômeno explica em boa parte os fatos que deixaram perplexos muitos observadores da cena pública brasileira aqui e em outros países.
Até o mais obtuso dos midiotas se deu conta de que ocorreu um golpe parlamentar sobre o poder Executivo – e embora muitos o aprovem, há nas redes sociais uma fartura de manifestações de gente que entende ter havido um acordo de bastidores para que a presidente eleita em 2014 fosse afastada do cargo mas tivesse preservados seus direitos políticos.
Há quem diga que se trata de oferecer um álibi para o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que tem sobre sua cabeça a espada da Justiça.
A tolice é um direito do indivíduo, assim como o livre pensar, mas parte dessas expressões de insensatez resulta justamente do processo de midiotização a que são submetidos os cidadãos comuns pela ação da mídia hegemônica.
Ninguém pode ignorar o papel central que os grandes conglomerados de comunicação têm jogado nessa crise.
Mas nenhum dos lados pode contar vitória, mesmo que se confirme a perda de mandato da chefe do Executivo, porque, se forem mantidas as regras democráticas, haverá uma eleição presidencial em 2018.
O que hoje parece uma derrota da democracia poderá se configurar, daqui a dois anos, em um fortalecimento do campo progressista, com a correção dos erros cometidos principalmente pelo Partido dos Trabalhadores e o abandono de certas ilusões de seus aliados naturais, afastados do núcleo do poder pelo irresponsabilidade do comando petista.
O transe protagonizado pelo baixo clero do Congresso, sob os auspícios da mídia tradicional, terá servido para depurar um projeto progressista de longo prazo.
Quanto ao filósofo Francis Wolff, teremos esquecido sua divertida delicadeza sobre o tema da amizade e seremos obrigados a esperar uma complementação de sua tese segundo a qual o desinteresse pela política ameaça a democracia.
O Brasil demonstra que o interesse pela política, dirigido e condicionado por uma imprensa manipuladora, também.
Para ler: Sobre Francis Wolff.
Para ler: O resumo da ópera, no Guardian.
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