Houve um ano mágico. 1942. A melhor de todas as safras. Hawkings, Scorsese, Harrison, Lennon, Caetano, Milton, Gil. Filhos do interior, vida pequena, grandes sonhos. Naum Alves de Souza, 3 de junho de 1942, Pirajuí, São Paulo. O ano do Cavalo. Dos rápidos, talentosos e trabalhadores. Natureza independente, o cavalo irá longe na vida.
Naum foi a galope para São Paulo. Professor de artes, artista plástico, cenógrafo, figurinista, colaborador, diretor. Em 1978, estreou o aclamado autor de No Natal a Gente Vem te Buscar, primeiro grande sucesso de uma obra em que vemos desfilar as histórias e os personagens que marcam a presença de um profeta que nos mostra o devir, baseado na reconstituição de imagens de passado. Naum é um pintor que, de memória, reconstitui realisticamente o que viu. Não é um memorialista. É, como Pedro Nava, um porteiro de um baú de ossos. É perceber que lugar é esse de A Aurora Da Minha Vida. Um impressionista.
Desde a estreia, com Maratona, até a fase de afirmação (No Natal a Gente Vem te Buscar, A Aurora da Minha Vida e as versões, masculina e feminina, de Um Beijo, Um Abraço, Um Aperto de Mão), passando por tentativas de ruptura (Nijinsky, Suburbano Coração, Um Ato de Natal, Água com Açúcar, O Pivô e Strippers), incluindo suas peças inéditas (Ódio a Mozart, Arrebatada, Domingo Feliz no Calçadão, A Tia É Muito Esquisita, Um Menino, Ilmo. Sr., Três Cunhadas Baixas e Aquele Ano das Marmitas), o que se vê é um incansável desfile de gente que se alterna entre ser massacrado e massacrar. Relações doentias, “sadomasô”, expostas em diálogos simples e diretos.
Os temas: crueldade de infância, as atrapalhações da juventude, os ressentimentos na vida adulta, incluindo aí a crítica aos críticos, o abandono na velhice. A religião ocupa o centro desse altar repleto dos santos de pau oco, que são os sentimentos cultivados nos círculos fechados das instituições que impedem o livre galopar, sem arreios e sem bridão.
Sua alma de professor e de artista cênico empurra sua carpintaria para a criação coletiva, participação dividida. Não há protagonista nem antagonista: o exercício da atuação é democrático. Um educador/diretor/encenador obtém o mesmo desempenho com elenco pequeno, personagens que se revezam, se ausentam, voltam. Exige perícia dos atores para a movimentação em cena. Em Suburbano Coração, 5 atores, 13 personagens. Até Fernanda Montenegro se reveza em dois papéis.
As cenas cotidianas do remelento pequeno viver podem aparecer como lembranças. Uma escolha estética, utilizada como contraponto a uma vigente dramaturgia revolucionária para pregar um novo estado social ou uma encenação desligada de qualquer teoria. O salto fora da utopia ideológica lança Naum, imediatamente, ao lugar de importante autor brasileiro, desde a estreia com Maratona.
Falso herdeiro de Nelson Rodrigues e de Jorge de Andrade, pois não é a sociedade em decadência que pinta. É a alma do sujeito, a impossibilidade, a dolorida e pungente ausência dos anos que não voltam mais. Por isso, justapõe elementos de outras linguagens: a técnica de edição cinematográfica; cenas que funcionam como uma história dentro de uma história. Desdobramentos. Afinal é um autor que domina as várias técnicas do espetáculo.
Naum ganha a cena brasileira desde a largada, não precisa atropelar na reta final. Seu galope é sem amarras. Imponente. Um campeão. E como todo grande campeão suas sementes se espalham sempre em novas sementes. A quem diretores, atores, vêm sempre buscar.
Deixe um comentário