O protagonista de A Queda, de Albert Camus, narra a certa altura o episódio em que, em meio a um incidente banal, uma cena corriqueira do cotidiano das ruas, toma um tapa gratuito, vindo de trás – por isso mesmo, injusto – ao qual veio acoplado um insulto humilhante.
O mais humilhante é que, porque o trânsito anda de repente e porque a surpresa não permite que os brios despertem a tempo, o tapa e o insulto ficam sem resposta.
Outro dia, enquanto tinha o corpo curvado, tentando evitar que meu filho, muito disposto para a aventura, entrasse na contramão de uma escada rolante, chegou-me também por trás uma fala que talvez carregasse as mesmas intenções de um tapa:
Espero que seu filho tenha um coração melhor que o seu… professor Salem Nasser!
A primeira parte da fala veio carregada com aquele tom de mágoa que ameaça ou promete uma vingança divina, último recurso de quem sente ter sofrido um crime sem contar com os meios de aplicar pessoalmente a sanção devida.
Já o “professor Salem Nasser!” trazia mais honestamente sinais de um genuíno desprezo.
Só pude responder, hesitante, agradecendo: obrigado… Acho que não cheguei a emitir o complemento: …eu também!
E de fato, se o voto emitido por aquele passante anônimo – anônimo, mas ainda assim juiz autonomeado da qualidade do meu coração – pudesse ser tomado pelo seu valor de face, eu e ele estaríamos em perfeito acordo.
Eu desejo que em todas as coisas meu filho seja melhor do que eu. E, se eu for atendido, o coração do meu filho será ainda mais intolerante com a injustiça do que o meu.
Longe, no entanto, de querer expressar uma comunhão de desejos comigo, aquele passante queria fazer-nos, a mim e ao meu coração, pesadas censuras. Algo me diz que elas tinham a ver com acusações que eu, vez e outra, faço a Israel, acusações que meu juiz percebe como uma minha propensão à injustiça, ou talvez como vícios ainda mais graves… bem mais graves.
Para que não reste dúvida sobre o que corre em meu coração, só posso responder assim: nele não há lugar para a segregação racial, étnica ou religiosa; nem há lugar para a expulsão das pessoas de suas casas e de sua terra; certamente não cabe nele a tentativa de apagamento gradual de um povo e de sua história.
A lista das coisas que não devem caber nos corações é longa. O mal e a injustiça estão em todos os lugares da experiência humana.
É verdade que Israel não é o único responsável pelos males do mundo. Nem mesmo o é por todas as coisas que me afligem.
Mas confesso que tenho uma sensibilidade especial para a limpeza étnica e para o apartheid. Mais ainda quando são operados com premeditação e sofisticação impressionantes. E mais ainda quando se instala uma cegueira generalizada nos espíritos que torna invisível o mal que lhes é inerente.
Se é disso que se quis acusar meu coração, eu nos declaro, os dois, culpados.
Se não era isso, então terei pago com uma pequena injustiça a gratuidade da grosseria com que me brindou o juiz de ocasião.
Meu filho há de ser mais sábio…
*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.
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