Michael Derrick Hudson é um poeta nem bom nem ruim (pelo pouco que eu li, mais pra ruim), que no entanto ganhou as páginas literárias nos EUA ao revelar o cínico estratagema que adotou para ser publicado, depois de 40 recusas. Possuidor daquele tipo de esperteza que nada tem a ver com inteligência e muito menos com ética, adotou o pseudônimo Yi-Fen Chou, de sonoridade aparentemente chinesa. Sua intenção, evidente, era ganhar um lugar ao sol na cota que supostamente é reservada para contemplar minorias.
Pode-se discutir horas e mesmo dias se o politicamente correto é bom para a cultura. Mas uma coisa é certa: se não fosse dada atenção especial aos artistas surgidos em grupos que sofrem historicamente com o preconceito, jamais conheceríamos muitos deles. Heterossexuais brancos de classe média e alta dominam o mundo e portanto têm muito mais chances de se destacarem em quaisquer atividades.
O que inclui a poesia.
Com seu pseudônimo multiculturalista, Hudson recebeu apenas 9 recusas para o poema “The Bees, the Flowers, Jesus, Ancient Tigers, Poseidon, Adam and Eve”. Uma desaceitação 75% menor. E uma gloriosa acolhida na revista Prairie Schooner.
Se ficasse por aí, é possível que não tivesse maiores consequências.
Mas então o poema é selecionado para a prestigiosa coletânea The Best American Poetry 2015. Vaidoso, Hudson revela o ardil na notinha autobiográfica que lhe pedem. Poderia ter continuado com sua máscara e inventado alguma história. Talvez, no futuro, no caso muito improvável de que permanecesse na lembrança dos leitores, essa postura o redimisse, podendo ser confundida com a criação de uma persona, ou algo que o valha. Isso posto, que essa persona tivesse de fato uma obra, como os heterônimos de Pessoa.
Para complicar, Sherman Alexis, o editor convidado para fazer a seleção, mantém o poema. E, para complicar ainda mais, o próprio Alexis, poeta e escritor bastante elogiado, premiado com o National Book Award, é de ascendência indígena .
Assim que o livro é publicado, os protestos se multiplicam, a comunidade literária fica eriçada, indignada. E com razão. Razão num caso espinhoso, em que todos têm (essa maldita) razão, em maior ou menor grau. O falso chinês, ainda que cínico e mau-caráter, não fez nada que seja legalmente condenável (e, convenhamos, estaria “perdoado” se seu poema fosse absolutamente genial, o que está longe de ser o caso); o editor, por sua vez, deu uma bem-humorada, franca e convincente explicação do porquê ter mantido o poema.
Primeiro, expôs onze regras que estabeleceu para sua curadoria. Lendo, qualquer um diria que o mundo seria melhor com essas regras. Sherman Alexis se cercou de todos os cuidados para não incorrer em injustiças, ou, ao menos, para minimizá-las, já que toda escolha é subjetiva e sujeita a desagradar gregos ou troianos. (Ou, como se viu, espartanos.) E leu muito, mais de dois mil poemas, até na internet. Realmente é difícil culpá-lo de alguma coisa.
Segundo, ele admite que o nome asiático despertou de fato uma atenção especial. Afinal, entre suas regras está aquela que o obrigava a não passar batido por minorias ou poetas subestimados, ou jovens talentos que ainda batalham por qualquer reconhecimento. Ou mesmo velhos poetas que se atém a formas tradicionais do verso, normalmente colocados pra escanteio. E aqui o problema é a palavra Best. O conceito de melhor, a não ser que se possa de fato medir, como nas corridas ou salto em distância, é muito relativo – e mais ainda num universo que se pretende politicamente correto (ou, simplesmente, justo).
Normalmente as coletâneas, seleções ou listas buscam um certo equilíbrio entre nomes e estilos, para dar graça e diversidade à coisa. Não fosse assim, uma coletânea de poesia brasileira só teria Drummond, Bandeira, Cabral, Murilo Mendes e Jorge de Lima. É quase consenso que ninguém de fato é melhor do que eles ou está no mesmo patamar. Mas aí não seria uma boa amostra da poesia brasileira, que conta com muitos outros excelentes poetas.
E é esse o caso da seleção de Alexis. Para não repetir os medalhões e não ser injusto com minorias, incluiu o falso chinês. Em sua defesa, disse que deixou muitos poemas de minorias de fora, incluindo poetas negros e indígenas como ele mesmo. E que, se manteve o poema, foi justamente para deixar claro que o critério “minoria” foi considerado, mesmo que ele tenha sido enganado.
Faz sentido? Pra mim faz. Se ainda ficou em dúvida, leia o texto do próprio Alexis.
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