A Rússia entrou então em força na guerra síria. A questão talvez mais importante da política internacional nestes últimos anos sofrerá transformações profundas. O equilíbrio de forças no Oriente Médio e no mundo está sendo refeito.
Mas entre nós a notícia não é essa. A notícia é a reação dos Estados Unidos à entrada da Rússia, o que os Estados Unidos disseram que pensam sobre o assunto. A notícia é que os Estados Unidos não gostaram, que eles acham que os ataques russos fortalecerão o Estado Islâmico, que causarão a fúria dos sunitas moderados… O mesmo pensam, ou dizem que pensam, o Reino Unido, a França, a Otan…
É isso que nos contam os correspondentes desde Nova Iorque, Londres, Paris. É o que nos contam os artigos que alguém escreveu nos think-tanks e universidades dessas mesmas cidades. É o que declaram os porta-vozes desses mesmos governos.
O que pensam os russos e o que se diz em Moscou, ninguém sabe, não é notícia. O que se pensa em Damasco, em Teerã, em Pequim, não há correspondentes que nos digam. Não há quem traduza ou transmita o que dizem os porta-vozes desses outros governos. Não há um outro ângulo de onde olhar o mundo e seus acontecimentos.
É um pouco como o lado oculto da lua. Mal nos lembramos que está lá porque o sol que ilumina tudo que vemos, ou, se quisermos, o dono da lanterna, só aponta para onde quer.
O que é verdade para a Síria talvez o seja ainda mais para a Palestina.
“Netanyahu teve que cancelar a sua viagem à Alemanha por causa da violência dos últimos dias”. Foi mais ou menos assim que a apresentadora de um grande canal de informação abriu a notícia. Seguiu contando da mulher palestina que atacou um homem israelense com uma faca e contando que o homem estava armado e atirou nela. E mais, que um outro palestino atacou a facadas soldados israelenses e foi morto por eles. E, finalmente, que antes disso alguns palestinos haviam morrido.
A estrutura desse discurso revela muito daquela visão unilateral em que foram treinados espíritos pouco dispostos para a crítica ou mesmo para a curiosidade.
A secretária pessoal de Netanyahu talvez tenha como primeira preocupação o adiamento da viagem. Que a Palestina talvez esteja à beira da terceira intifada é o que deveria ocupar o jornalista. Mas o que fazer se as agências internacionais cujo conteúdo se reproduz não disseram nada sobre isso?
Essa história veio contada assim: alguns palestinos enlouquecidos, ou, sendo naturalmente violentos, resolveram atacar israelenses indefesos que apenas por acaso estavam armados ou soldados que tranquilamente vigiavam uma terra em que até ali reinava a paz.
Nenhum contexto, nada sobre a ocupação, nada sobre os assentamentos, nada sobre as expulsões dos palestinos de suas casas e sobre a destruição das casas dos palestinos, nada sobre a exclusão dos palestinos da cidade antiga de Jerusalém, nada sobre o novo regime para a entrada na esplanada das mesquitas.
E mais, nada sobre a humilhação cotidiana, nada sobre a ausência de futuro, nada sobre o desespero.
Já aqueles outros palestinos que, in extremis nos é dito, morreram, bem, simplesmente morreram. Como foi, não se sabe, não parece interessar. Foram mortos? A tiros? A facadas? Morreram. Não há mais que interesse à notícia.
Já em outro lugar alguém descreveu assim o que acontece nestes últimos dias: “está aberta a temporada de caça, qualquer soldado, qualquer colono, sabe que pode matar impunemente qualquer palestino”.
Mas isso foi dito lá, em algum lugar do lado oculto. Não temos como ouvir daqui.
*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.
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