O mais profundo é a pele

Coluna_header_ topo Auro Danny Lecher

Foto: Ingimages
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Tenho o saudável hábito de desconfiar das afirmações (e pessoas) pomposas, cheias de si, que são capazes de definir qualquer coisa totalmente. Eu vou à padaria da esquina e um vaticínio sempre me espreita. “Pão na chapa se mergulha na média bem quente”, “a existência precede a essência” ou “o Homem é um animal racional”.

Na vida não funciona, na arte, às vezes. Ih! Acabei de cometer o que critico. Não me importo, sou um dos que mais desconfio de mim mesmo.

Mas nesse meio século de vida vivida tenho confirmado aquilo que diz um verso de Paul Verlaine, que li  anos atrás: O mais profundo é a pele.

Conheço vários colegas da minha turma, e contemporâneos na faculdade de medicina, que tinham sérias dúvidas ao prestarem o exame de Residência para especialização:  psiquiatria ou dermatologia? Quantas patologias de pele são a somatização de conflitos psíquicos? Clássico.

Se ainda não te convenci, convoco então essas linhas de Michel Tournier**, que usa Robinson Crusoé e sua tensa relação com a ilha Speranza, para nos provocar suspeitosas indagações sobre o dilema entre superfície e profundidade: “por exemplo,  nunca até agora pensara em estudar o uso que se faz em expressões como “um espírito profundo”, “um amor profundo”. Estranha prevenção essa que valoriza cegamente a profundidade à custa da superfície, e que faz com que “superficial” signifique não “de vasta dimensão”, mas, sim, “de pouca profundidade”, enquanto “profundo” significa, pelo contrário, “de grande profundidade” e não “de fraca superfície”. E, no entanto, um sentimento como o amor mede-se bem melhor – caso possa ser medido – pela importância da sua superfície do que pelo seu grau de profundidade. Porque eu meço o meu amor por uma mulher pelo fato de que amo igualmente as suas mãos, os seus olhos, a maneira como anda, a roupa que usa, os seus objetos familiares, aqueles que a sua mão aflorou, as paisagens onde a vi evoluir, o mar onde se banhou…Tudo isso é bem a superfície, parece-me!”.

Além do mais,  temos ainda bons argumentos biológicos.

A  pele é o maior e mais pesado órgão do corpo humano, respondendo por 15% do seu peso total.

Ela define a fronteira entre o Eu e o Outro. Entre a interioridade e a exterioridade, que inclui a natureza, o ambiente familiar, cultural, um outro Eu humano, com sua pele-fronteira também.

Ela é responsável por controlar a temperatura do corpo, protege mecanicamente das agressões próprias da interação com o meio, possui, também, mecanismos de defesa imunológica contra infecções e metabólicos como a produção da vitamina D.

Cabe aqui um lembrete para sermos justos. Temos que falar da pele mas também de suas extensões, como os cabelos ou as unhas.

Eu incluiria, por uma questão de coerência, também algumas glândulas e secreções, como a lágrima, que é a exteriorização de um sentimento de dentro, e o líquido seminal, que é expelido na hora H, quando todos os poros e pêlos da pele se arrepiam no êxtase entre superfície e profundidade, quando elas se fundem e viram uma coisa só.

*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenador do Projeto Quixote e psicoterapeuta

**Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico, pg  61, Michel Tournier, Bertrand Brasil.


Comentários

2 respostas para “O mais profundo é a pele”

  1. Ao ler seu texto, me senti numa conversa. Pude te perceber perto de mim. Superfície?

  2. Muito bom! Show! De fato, refletindo sobre o artigo, o externo é fundamental, único e dá muitas dicas sobre o que pensamos e como agimos. A questão é se aprendemos a ler esses sinais ao longo da vida (ou se fingimos que não vemos, com medo de nos decepcionar…). Além disso, somos também o externo. Verdade. Não é menos que o interno. É “também”.

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