O mesmo pedaço de caminho

Foto: Creative Commons
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Há uns dias recebi um presente: um amigo mandou-me um conto de Tchekhov (arrisco dizer, sem ter lido tantos assim que quase todos os contos de Tchekhov são presentes).

Nele, dois policiais do interior rural conduzem um prisioneiro que se recusa a – ou já não sabe – dizer quem é.

O prisioneiro não se parece com um criminoso, não aparenta o tipo, está mais para um crente humilde, talvez iluminado. Ao final da estória, no entanto, não se sabe dizer se é assassino cruel e hábil manipulador ou se é uma vítima ignorante da pobreza e da injustiça.

Quando depois de um tempo de caminhada estabelece-se uma conversa entre o prisioneiro e os guardas – na verdade, sobretudo um dos guardas – aquele homem dá indícios de não querer lembrar quem é para não ser mandado de volta à prisão de onde fugira, quase por acidente, e aos trabalhos forçados.

Prefere que o mandem, por não dizer o nome, à Sibéria, onde, põe-se a fantasiar – apesar de todo o mal que se fala do lugar e de todo o medo que se tem dele – que ali começará de novo, cultivará um pedaço de terra, aprenderá a pescar…

O guarda que até ali calara fuzila então seu sonho ao lhe dizer que provavelmente jamais chegaria vivo à Sibéria porque não aguentaria a viagem; mal dava conta daquele percurso que faziam e que em nada se comparava com a grande jornada rumo ao norte.

Eles tinham já percorrido um longo caminho, mas todo o tempo, em torno deles, havia uma névoa tão espessa que tinham a impressão de estarem permanentemente percorrendo o mesmo pedaço de chão, ainda que aqui e ali pedras, plantas, acidentes estivessem dispostos de modo novo e diverso.

O Brasil dos nossos dias, e o mundo de Trump e outros é em grande medida assim: estamos presos no mesmo pedaço de caminho, por vezes pensamos ver algo novo, diferente, melhor ou pior, mas logo sabemos que a disposição ligeiramente diferente dos móveis não muda a natureza do cenário ou o enredo; estamos cercados de névoa.

Avança-se é claro, em direção àquele lugar terrível de onde escapamos (será?) apenas brevemente e talvez por acaso. Já não sabemos, ou não queremos lembrar, quem somos. A nossa única esperança é projetada não para um paraíso terrestre, mas para o desterro onde fantasiamos poder construir algo novo.

E a esperança é rapidamente morta. Mergulhamos novamente no desamparo e baixamos de novo o olhar em direção ao mesmo chão.


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