Dez coisas horríveis que sei sobre mim

O ator, cantor, compositor e radialista Mario Lago, que completaria 104 anos nesta quinta-feira e é coautor do samba "Ai, Que Saudade de Amélia" (foto: Reprodução / Facebook)
O ator, cantor, compositor e radialista Mário Lago, que completaria 104 anos nesta quinta-feira e é coautor do samba “Ai, Que Saudade de Amélia” (foto: Reprodução / Facebook)

Ontem, 24h após ficar fora do Facebook, assim que vi a campanha #MeuAmigoSecreto predominar na timeline de minha página pessoal, sem refletir, cai na tentação do imediatismo opinativo que tem predominado na redes sociais e condenei alguns depoimentos que li, por julgar que havia neles indiretas vexatórias. 

Continuo a julgar supérfluos os posts que me levaram a essa observação rasa, provavelmente por ter identificado quatro ou cinco pessoas delatadas indiretamente e julgar que o pitaco não necessariamente tinha a ver com questões feministas ou de gênero, tratava-se de lavagem de roupa suja e, portanto, poderia ter sido manifestado tête-à-tête .

Complementei o post com uma velha canção de Jorge Ben Jor cujo refrão afirma “quem cochicha o rabo espicha”. Sintomaticamente, apesar de algumas amigas terem curtido o post e até manifestado empatia com minha opinião no campo de comentários, a curtição foi majoritariamente masculina. O único homem que condenou o post, o amigo Leandro Cunha, foi certeiro: “Brother, nem todas as pessoas podiam ou podem falar na cara. Para muitas meninas isso é até questão de sobrevivência ou de manter o emprego”, disse ele. A amiga Marina Tavares, a primeira a condenar meu post, ainda teve a gentileza de se desculpar com um “lá vem textão”, antes de “desenhar” a estupidez de meu comentário. “São muitos os casos e maiores ainda as especificidades de cada um. A coisa pode parecer mimimi, picuinhagem, indiretinha, mas quando se trata de violência contra a mulher (física, psicológica, emocional, financeira), pode ter certeza que respirar fundo e colocar pra fora é um puta avanço”, disse Marina.

Vinte e quatro horas após o episódio visto a carapuça e reconheço que minha consideração foi extremamente infeliz e séria candidata a ser rotulada com a #MeuAmigoSecreto. Afinal, ao tentar fazer com que minha opinião fosse considerada, joguei o velho jogo do protagonismo masculino.

Não cabe a nós, homens, julgar algo que diz respeito a terrível condição feminina em nosso País. No Brasil, cerca de 5 mil mulheres são assassinadas ano após ano. No Brasil, no mesmo período de tempo, cerca de 50 mil estupros são registrados por aquelas que têm coragem de fazer tal relato. Mas o que isso tem a ver comigo, com você e com a #MeuAmigoSecreto?! Tudo a ver, amigos. Por trás dessas estatísticas assombrosas estão comportamentos nocivos que replicamos diariamente sem que percebamos. Pior, até os ensinamos simbioticamente a nossos filhos. Sou pai de um menino de 13 anos, Davi, e sei do meu compromisso em fazer dele um homem livre desse estatuto secular de opressão masculina.

Como jornalista e, portanto, formador de opinião, utilizo o espaço desta coluna para tornar público meu pedido de desculpas a todas as amigas da minha rede de contatos no Facebook, e também pedir a você, caro leitor, que reflita sobre a importância de movimentações como essa.

Aproveito o ensejo para listar dez coisas horríveis que sei sobre mim:

1) Já fiz de minhas conquistas furtivas motivo de cabotinagem entre meus amigos.

2) Já fui vil, em comentários e atitudes, quando terminei relações mais duradouras.

3) Já fui ao encontro de uma ex-namorada, de forma invasiva, sem que ela soubesse, ao saber que ela estaria em determinado local.

4) Já enviei mensagens in box, estupidamente galanteadoras, para garotas que sequer conhecia pessoalmente.

5) Já ignorei comentários machistas de amigos quando devia tê-los repreendido.

6) Nunca cantei mulheres na rua, mas excedi olhares que, depois percebi, eram sintomáticos da prática cotidiana de objetificar o corpo da mulher.

7) Movido pela presunção misógina de superioridade intelectual, já falei mais do que devia em rodas de conversas entre amigos e sufoquei a opinião de parceiras.

8) Já trai, e me senti estupidamente poderoso por causa disso quando confidenciei a aventura para um ou outro amigo.

9) Já curti excessivamente posts de mulheres pelas quais tinha a intenção de me aproximar.

10) Oito anos atrás, após o fim de um relacionamento duradouro, em meio a uma balada e durante uma discussão, tive a capacidade de jogar um copo de cerveja sobre uma ex-parceira.

Ilustro esse texto com uma foto de Mário Lago porque, nesta quinta-feira, ele completaria 104 anos. Claro, faço desse fato uma alusão à famosa canção Ai, Que Saudades da Amélia. Reza a lenda, o samba de Ataulfo Alves letrado por Mário foi inspirado em uma empregada doméstica que tinha nove filhos e fazia “tudo” por seu homem. A música foi composta em 1941. No atual momento de difusão do feminismo em nosso País, Mário e Ataulfo certamente teriam sido sabatinados e condenados nas redes sociais pelo conteúdo extremamente misógino da composição. Perceberiam que, em pleno Século 21, não cabe a nós, homens, definir o que é ser “mulher de verdade”. 

Espero que esse texto possa contribuir para que outros homens reconheçam atitudes condenáveis que continuam a praticar. Não acho que teremos a ousadia de criar uma hashtag como, por exemplo, #DezCoisasHorríveisQueSeiSobreMim, mas torço para que esse levante de visibilidade do que há de pior em nós nos faça refletir e evoluir. Que a autocrítica esteja conosco! 

P.s.: Meu constrangimento foi ainda maior ao descobrir que justamente ontem foi Dia Internacional Pela Não Violência à Mulher. Soube disso pelo excelente texto Lugar de Mulher é na Cozinha. Né, não?, da amiga Fernanda Cirenza que, aliás, mantém no site da Brasileiros a coluna Mulherio.                

 


Comentários

5 respostas para “Dez coisas horríveis que sei sobre mim”

  1. pode ter certeza que os homens levarão muito mais a sério o seu texto falando sobre o tema do que os relatos das meninas.
    tem caminho demais pela frente, viu.

  2. Avatar de AdrianaPinho
    AdrianaPinho

    Parabéns por se posicionar!!!

    1. Obrigado, Adriana. Nada além do mínimo do que eu podia fazer após o equívoco pretensioso de dar pitaco sobre o que sequer procurei entender. Façamos do silêncio e da compreensão uma virtude.

  3. Avatar de Maraysa Carvalho
    Maraysa Carvalho

    I have a dream…
    Gostaria que outros homens lessem sua postagem e assumissem, com coragem e humildade, seus comportamentos machistas, reconhecendo que não podem, jamais, compreender integralmente o que passa uma mulher, pelo simples fato de ser mulher e habitar o maior cativeiro humano que existe para nós: o corpo feminino.
    A grande proposta do Movimento Feminista, no auge da quarta onda, não é destilar ódio e ressentimento, e sim propor uma mudança de pensamentos e hábitos, que estão enraizados em nossa cultura desde sempre (que baita desafio, hein?!). Vibro com um texto como o seu, porque ele reflete exatamente o que as feministas almejam, uma compreensão de que é possível vivermos numa sociedade em que homens e mulheres se respeitem. Sabemos que somos diferentes, mas nessa diferença natural existente entre os gêneros não deve residir nenhum preconceito.
    I have a dream…

    1. Maraysa,

      Agradeço suas palavras e compartilho de seu sonho. Fui formado em um ambiente tipicamente patriarcal e misógino, hereditário do pensamento estreito da geração que formou meu pai, um homem nascido no começo dos anos 1940. Período em que o feminicídio sequer tinha esse nome e era absolvido com o argumento legal de “defesa da honra”.

      Anseio, sinceramente, que somemos forças para virar essa página. Já não é sem tempo.

      Mesmo ciente de que esse é um trabalho de formiguinha espero, com essa mea culpa, ter contribuído minimamente para incutir na cabeça de meus semelhantes o compromisso de abolir tais estatutos.

      Que esse compromisso esteja cada vez mais presente no cotidiano de nós, homens.

      Em frente!

      Abraço

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