“Tudo não passou de teatro! Mentira: Regina Casé doa brinquedos para crianças e depois pega de volta”. A manchete e a frase que a sucede estão circulando hoje nas redes sociais, por meio de um conhecido portal de notícias, não identificado aqui, porque não se trata de caso isolado e a intenção deste texto não é apontar o dedo em riste a um veículo de imprensa específico.
A polêmica em torno do episódio, replicada na manchete reproduzida na foto acima, veio à tona nas redes sociais na última segunda-feira, 10.8. “Noticiado” em blogs sem o menor compromisso com a verdade e, depois, em alguns portais de notícias, o factoide denunciava um “ato cruel” de Regina Casé, apresentadora do programa Esquenta da Rede Globo, acusada de ter promovido uma falsa doação de brinquedos.
No mais recente episódio da atração dominical, que coincidiu com o Dia dos Pais, entre os convidados estava Bruno Gouveia, vocalista da banda Biquini Cavadão. Em junho de 2011, um acidente aéreo tirou as vidas de sua ex-mulher, Fernada Kfuri, e de seu filho, Gabriel, morto aos 2 anos com a queda de um helicóptero que levaria mãe e filho, e outras cinco pessoas, de Porto Seguro à Trancoso, no litoral Sul da Bahia.
A tragédia impôs ao cantor o ritual de lidar diariamente com objetos cotidianos ligados à memória afetiva da mulher e do filho. Realidade que só aumentava a angústia da ausência de ambos. Tempos depois, diante das coisas intactas no quarto de Gabriel, Gouveia teve a ideia de articular campanhas de doação de brinquedos para instituições que cuidam de crianças carentes. Quatro anos depois, ele continua a repetir o gesto. Ciente dessa história, a produção do Esquenta decidiu promover uma arrecadação de brinquedos para serem entregues ao cantor. Cerca de 500 itens foram reunidos, mas, nos cinco dias que sucederam o episódio do último domingo, a história foi completamente distorcida, com a acusação de que Regina havia enganado as poucas crianças presentes no programa com a falsa doação de brinquedos.
A intenção deste texto não é cumprir o papel de advogado do diabo de Regina Casé, do Esquenta ou da frágil credibilidade da Rede Globo, mas questionar os mecanismos do manchetismo pernicioso e diário que, na guerra por audiência, alimenta comportamentos doentios de parte da opinião pública manifestados, sobretudo, nos campos de comentário de “notícias” e no ambiente viral das redes sociais. Somente no Facebook, o portal de notícias que, cinco dias depois, insiste em não esclarecer o factoide, tem cerca de 250 mil seguidores. Checar informações é regra basilar do jornalismo. Ignorada a prática, não há jornalismo. Ponto. Mas, além de não consultar a apresentadora ou a produção do seu programa, o tal veículo ainda teve a pachorra de creditar como fonte o site boatos.org que, ironicamente, se propõe a desvendar casos como esse. Um factoide ao alcance de 250 mil leitores. Considerando que este número representa apenas um veículo, pense no tamanho do estrago dessa cultura de criar manchetes apelativas para leitores que disparam opiniões absolutistas sem se dar ao trabalho de ler sequer um parágrafo do que é publicado.
Nos tempos monolíticos da internet discada, nutríamos o sonho pueril de que em poucos anos daríamos início à chamada Sociedade da Informação. Paradoxalmente, a banda larga da rede mundial de computadores expande, à medida em que o pensamento de muitos internautas é cada vez mais estreito. Nesse episódio envolvendo Regina Casé e o líder do Biquini Cavadão, temos um exemplo claro de como as redes sociais vêm se tornando uma plataforma cada vez mais alienante.
Em junho passado, ao receber o título de Doutor Honoris Causa na Universidade de Turim, na Itália, o escritor Umberto Eco disparou: “O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia ao portador da verdade”. Fecho com ele, mas, para além do comportamento do internauta, deixo aqui uma pergunta aos colegas de imprensa: na luta pela audiência diária em ambientes virtuais, qual é a dimensão da nossa responsabilidade nesse processo de alienação do leitor?
Vale refletir. Caso contrário, continuaremos reféns da obsolescência explicitada na frase “leio um jornal que é de ontem / pois pra mim tanto faz”, parte de uma das estrofes de Tédio, o maior sucesso do Biquini Cavadão.
MAIS:
Leia abaixo o esclarecimento de Regina Casé ao episódio.
“Não gosto de ficar respondendo provocações de internet porque tem muita bobajada, além de gente querendo se promover. A história do programa de Dia dos Pais foi que o Bruno Gouveia, do Biquíni Cavadão, contou sobre a perda do filho dele [Gabriel, que morreu aos 2 anos, em 2011, num acidente de helicóptero] e da dor que sentia ao ver os brinquedos do menino. Ele começou a doar e a fazer bem a um monte de gente. Inspirados nisso, nós compramos 500 brinquedos para doar. Nós, a produção do programa. E sugerimos que quem fosse participar da plateia daquele dia levasse também. Fizemos um baú bem grande, daí as pessoas iam lá e depositavam o brinquedo, como um ritual. Teve gente que não levou, então deixamos na mão dessas pessoas brinquedos para colocar no baú. O objetivo era levar tudo aquilo para duas instituições, coisa que inclusive já fizemos.Ou seja, não eram brindes para a plateia. Até porque na plateia daquele dia não havia crianças carentes, mas sim acompanhadas dos pais. Eu também adoro ganhar brinde, mas ali o destino desde o começo era doar para as instituições. E aí, nessas coisas terríveis que acontecem nesse ambiente pantanoso que viraram as redes sociais, distorceram tudo. Mas foi uma ação linda, o Bruno escreveu para a gente emocionado.”
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