Neste dia 17 de abril de 2016 que, para mim e para muitos, entrará para a história do País como um domingo de melancólico retrocesso democrático, parte expressiva da população sairá às ruas do Brasil para manifestar apoio a um processo de impeachment presidencial que, para mim e para muitos, beira o surrealismo, uma ação vil, conduzida por um parlamentar que é réu no Supremo Tribunal Federal (STF) e há mais de 200 dias se esquiva de provas incontestáveis para se manter no poder, não sem o auxílio basilar de grandes corporações de comunicação que, diariamente, manipulam a opinião pública em nome de interesses escusos bilaterais e fazem milhões de brasileiros acreditarem nas famigeradas pedaladas fiscais como argumento razoável para abreviar o mandato de uma presidenta eleita pela soberania do voto popular.
Mas, afinal, o que nos trouxe a esse domingo? Como cidadão que participa do processo democrático desde o pleito presidencial de 1989, quando aos 16 anos pude participar do momento histórico em que, enfim, foi devolvido ao povo brasileiro o direito a eleições diretas depois de 25 anos de governos biônicos, tenho algumas suposições.
A meu ver, o processo que culminou neste fatídico domingo foi deflagrado, sobretudo, pela incapacidade de vários setores de nossa sociedade, incluindo-se aí o PT de Dilma, de compreender o significado, paradoxalmente explícito, das jornadas de junho de 2013.
Vamos então a um pequeno retrospecto. Em 06 de junho daquele ano, o Movimento Passe Livre foi à Avenida Paulista, em São Paulo, para realizar o primeiro ato contra o aumento da tarifa dos transportes públicos, que passaria de R$ 3,00 para R$ 3,20, mas que foi revogado, 13 dias depois, devido à pressão popular. Na contagem do MPL, naquela noite de quinta-feira, cinco mil manifestantes foram às ruas. Número não cravado pela Polícia Militar paulista que, no entanto, demonstrou eficácia em outro expediente, recorrente nos meses seguintes e ao longo dos últimos três anos, o uso seletivo da força repressiva em manifestações de cunho social ou de pautas progressistas.
“O transporte público de São Paulo é um dos mais caóticos, precários e caros do Brasil, como se vê noticiado todos os dias pela imprensa da cidade, e se vive todos os dias dentro dos ônibus e trens. Todos os dias as periferias sofrem com a falta de transporte público, com trânsito e violência policial. Ontem, o outro lado da cidade ficou sabendo como essa periferia se sente”, afirmava o comunicado enviado pelo MPL à imprensa na manhã seguinte.
Sete dias depois, no hoje histórico 13 de junho de 2013, o uso da força repressiva foi ainda maior e fez com que veículos da grande imprensa, como os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo, recuassem o pedido, expresso em editoriais no dia anterior, de uso da força para a contenção de “vândalos” e “baderneiros”. A reação popular ao excesso de violência do dia 13 foi surpreendente. Na manifestação seguinte, realizada na noite do dia 17, uma segunda-feira, milhões de brasileiros tomaram as ruas de diversas capitais para bradar pautas difusas, como o combate à corrupção, toda sorte de reivindicações sociais e, em menor proporção, o ódio ao PT e intervenção militar. “Querem o impossível? Não. Os brasileiros insatisfeitos com o já alcançado querem agora que os serviços públicos sejam como os do primeiro mundo”, afirmou, no artigo Porque o Brasil e Agora?, o jornalista Juan Arias, correspondente brasileiro do jornal espanhol El País.
Dos milhões que foram às ruas em junho de 2013, parte significativa devia ter consciência das dívidas históricas da classe política para com a população em serviços essenciais como Saúde e Educação. No entanto, parte expressiva desses cidadãos decidiu que a gorda conta de nossas mazelas seculares devia cair no colo de Dilma, que, um ano antes, tinha atingido o índice recorde de popularidade com a aprovação dos dois primeiros anos de mandato por 75% do eleitorado.
Na capa da edição 72 de Brasileiros, de julho de 2013, a manchete “O País Quer Mais Vitórias” deixava claro que após as marchas de junho nada seria como antes. Como diziam os cartazes de muitos manifestantes, a luta não era só pelos vinte centavos. Em 31 páginas, o significado da onda de insurreições do mês anterior foi analisado por personalidades de diversas áreas do pensamento, como Almir Pazzianotto Pinto, Antonio Bivar, Antonio Risério, Marilena Chauí, Giuseppe Cocco, Lincoln Secco, Maria Victoria Benevides e Teresa Caldeira.
“Uma nova possibilidade política está aberta. Algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária”, disse a filósofa Marilena Chauí à Brasileiros. Nas eleições de 2014, o prognóstico alarmante de Marilena foi confirmado nas urnas. Depois de ignorar a urgência da luta por reforma política, a principal saída para a crise institucional deflagrada em 2013, o eleitorado brasileiro foi capaz da sandice de eleger a bancada mais conservadora desde o golpe civil-militar de 1964. Fato que só agravou as perspectivas de governabilidade de Dilma Rousseff, então reeleita à Presidência da República com mais de 54 milhões de votos. Fato que só abriu caminho para a ascensão da chamada “Bancada BBB” (do boi, da bíblia e da bala) e de sua maior liderança, o atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Em entrevista exclusiva para aquela edição de Brasileiros, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já se mostrava cético à possibilidade de transformação do sistema político: “Quando eu estava na Presidência, cheguei a discutir com a minha equipe uma Constituinte só para fazer a reforma política. Mas não se consegue passar isso no Congresso. Muita gente prefere que fique do jeito que está”, disse Lula.
No artigo Nas Ruas, o historiador Lincoln Secco também alertava para uma eventual inocuidade da tentativa de reformas políticas e sociais. “O fato de que a direita midiática tenha conseguido por algum tempo sequestrar um movimento que também tinha potencialidade de esquerda comprova que, apesar da maioria dos jovens manifestantes usarem a internet para combinar os protestos, os temas continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação”, afirmou Secco.
Na opinião da socióloga Maria Victoria Benevides, expressa no artigo Em Defesa da Política, na estrada pavimentada em junho de 2013 havia a bifurcação entre os caminhos do avanço e do retrocesso “Estou convencida de que essa mobilização de hoje, por mais heterogênea que seja, pode favorecer o exercício da cidadania ativa democrática, assim como alcançar respostas dos governantes. Mas pode também abrir caminho para saídas autoritárias e elitistas. Fora da política não há salvação. Só a violência”, alertou Maria Victoria.
Sem exigir reforma política e cultivando o ódio seletivo, sob as rédeas da grande imprensa do País, da judicialização da política e da manipulação midiática da Operação Lava Jato, os que hoje defendem o fim do mandato de Dilma, com a justificativa rasa das pedaladas fiscais, compactuam o delírio coletivo de acreditar que terão contribuído civicamente para salvar o País da corrupção a partir de amanhã. Doce ilusão.
Depois de, há 26 anos, participar de um momento histórico, a reconquista do direito ao voto, lamento profundamente que este domingo seja simbolizado por espécie de auge do processo de “Indiretas Já!” conduzido por aqueles que, desde 2013, estão dopados pela incompreensão de nossa realidade histórica e imbuídos em uma sanha justiceira alimentada diariamente com o vergonhoso espetáculo midiático denunciado em grandes veículos da imprensa mundial, como o jornal The New York Times que, na capa da edição de sexta-feira (15), explicitou que Dilma será julgada por um “bando de ladrões” ao revelar para os leitores norte-americanos que “60 % dos 594 membros do Congresso brasileiro são processados por sérias acusações” (saiba mais).
Enquanto isso, a TV Câmara exibe, nesse momento, a imagem soturna de Eduardo Cunha a conduzir a votação do impeachment. Imagem que pode levar muitos a constatar que o gigante despertou, porém, atônito, vacilou por três anos e hoje cai, em praça pública, nocauteado com um golpe na nuca. Independentemente do resultado da votação na Câmara, não há dúvida, estamos vivendo um dos dias mais tristes de nossa jovem democracia, reconquistada com o sangue e a resiliência de milhares de brasileiros.
Veja o perfil de Eduardo Cunha, em reportagem exibida pela TV Brasil na última sexta-feira (15)
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