Não é preciso acompanhar a grade diária das redes de TV aberta do País para ter ideia do “elevado” conteúdo que por lá trafega. Mesmo aqueles que dispensam uma reles zapeada no controle remoto costumam ter contato com muito do que é veiculado na famigerada telinha, uma vez que o conteúdo de maior audiência, ou de caráter mais polêmico, acaba repercutindo nas timelines de redes sociais como o Facebook e o Twitter.
Em maior ou menor proporção, dependendo do mix de interesses da sua rede de contatos, é possível colher fragmentos do que estamos “perdendo” ao não acompanhar o dia a dia desta “rica” programação. Factoides políticos de uma imprensa nebulosamente parcial, âncoras necrófagos do jornalismo mundo-cão, messias 171 da chamada Teologia da Prosperidade, disseminadores de fofocas e frivolidades do submundo das sub-celebridades: esses e outros destaques integram o menu diário transmitido à milhões de lares brasileiros por meio de concessões públicas que, para além do entretenimento fugaz, deveriam também ser tratadas como um suporte fundamental para educar e inserir.
Foi desta forma, via redes sociais, que soube hoje da existência do personagem “Africano”, a mais nova criação do “comediante” Eduardo Sterblitch, integrante do humorístico Pânico, atração dominical da TV Bandeirantes. Talvez inspirado na excrescência chamada Black Face – gênero teatral criado no final do século 19, em que atores brancos se travestiam de pretos, com roupas e pinturas, para disseminar piadas racistas –, Sterblitch colocou a prova seu “Africano” no domingo anterior (2.8), em participação no quadro Pânico’s Chef, paródia indigesta, à maneira Pânico, do Master Chef, o reality-show que tem feito sucesso na grade da mesma emissora paulistana.
No post do Facebook em que tive o desprazer de ter ciência de que, em pleno ano de 2015, uma sandice como essas vem a público inadvertidamente, o apresentador do Pânico e também radialista, Emílio Surita, relembra ao público como foi lançada a mais nova criação de Sterblitch – cujo grande personagem, para quem desconhece o “humorista” é o insosso Freddie Mercury Prateado. Abro aspas e peço estômago ao leitor de bom senso.
“Vocês se lembram do Africano? O Africano fez um grande sucesso no Pânico’s Chef da semana passada, não foi isso mesmo?! (Vrololololáaaa!!! – responde, de forma ininteligível, Sterblitch, caracterizado do personagem, ao lado de Surita). Então, por gentileza, rodem o VT para que vocês entendam qual o desafio do Africano, hoje, aqui no programa…”
A voz de Surita, agora em off, elucida a gênese da cria infeliz, enquanto cenas do quadro veiculado no domingo retrasado reforçam características d’O Africano:
“…Desde que surgiu o Pânico’s Chef, um personagem especial se destacou, mesmo sem proferir qualquer palavra que se possa entender… O Africano embrulhou o estômago dos jurados e conquistou o coração do público. Uns dizem que ele recebe uma entidade (neste momento, acrescida à narração, é reprisada cena em que, apoiado na borda de um caldeirão, Sterblitch sugere fazer o que pejorativamente é chamado de despacho), outros que sofre espasmos musculares (o “humorista” dança de forma insana e primitiva), mas a maioria aposta que sua performance é apenas uma dança esquisita (com a língua frenética, como um animal, ele agora bebe água no bocal de uma das torneiras das pias utilizadas pelos aspirantes à chef). O Africano, essa figura ímpar da TV brasileira agora vai lançar um desafio para nossa audiência. Você, que está assistindo o Pânico agora, poderá fazer uma dança mais esquisita que a do Africano…”. O resumo do novo personagem é concluído com o convite ao telespectador para enviar um vídeo com uma dança ainda mais “maluca” (algo impossível) em desafio ao Africano.
Dado soturno, no momento em que este texto foi finalizado, o post descrito acima tinha sido curtido por mais de 12 mil pessoas. O que nos leva a crer que a interpretação feita por este colunista foi completamente ignorada por esses mais de dez mil cidadãos. No entanto, mais de 2,5 mil internautas haviam compartilhado o conteúdo para denunciar esse racismo repugnante travestido de humor. Faço questão de não reproduzir o vídeo neste texto, ou remeter o link para que o leitor o veja com seus próprios olhos, porque, francamente, torço para que, em tempo recorde, esse conteúdo esteja indisponível e que o personagem esteja devidamente extinto.
Ao resgatar expedientes do Black Face, prática condenada desde a conquista dos direitos civis dos negros americanos nos anos 1960, e atribuir o codinome genérico de “Africano” ao arquétipo desprezível criado por ele, Sterblitch ignora a luta diária por dignidade não só do brasileiro afrodescendente, mas de todos aqueles que, onde quer que estejam, carregam no sangue os genes da Mãe África e ainda são submetidos às mazelas seculares que lhes foram impostas.
Em meios propagadores de opiniões difusas como as redes sociais, não é de hoje que o Pânico é acusado, de objetificar mulheres, fazer chacotas estúpidas com anões e frequentemente apelar para recursos dispensáveis como a escatologia. Há quem goste e consiga rir com essa fórmula. Gosto é gosto, dirão alguns. No entanto, é estarrecedor considerar que ninguém na emissora tenha tido o bom senso de condenar esse novo personagem e proibir sua veiculação. Mais obtuso ainda é pensar que as cabeças iluminadas do Pânico tiveram uma semana para perceber o quão grotesco foi ter colocado no ar algo tão ofensivo. E não estamos MESMO falando de censura.
Faz dez dias, mas somente no último sábado (8.8) vieram à tona dois crimes ocorridos no fim de semana anterior, na véspera da estreia d’O Africano no Pânico. Em dois atentados, cometidos com arma de fogo no bairro do Glicério, região central de São Paulo, seis imigrantes haitianos – uma mulher e cinco homens – foram feridos com disparos abaixo da cintura. Felizmente, nenhum deles morreu. Uma das teses da investigação aponta para o crime de xenofobia. Segundo relato de uma das vítimas, os disparos foram antecedidos da acusação de que os haitianos estão no País para roubar empregos dos brasileiros.
Haitianos, chegam ao Brasil por meio do Acre, e bem sabemos, são originários do país caribenho, que também carrega em sua história o passado vexatório de escravidão de africanos. Xenofobia, muitos desconhecem o significado do termo, é praticada por aqueles que têm aversão às pessoas ou a coisas estrangeiras. O dicionário Houaiss define com maior precisão: “desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estranhas ao meio daquele que as ajuíza, ou pelo que é incomum ou vem de fora do país; xenofobismo”. O Houaiss ainda recomenda: “ver sinonímia de ‘preconceito’”. Preconceito, separatismo velado e convívio em ambientes violentos são coisas que, infelizmente, os pretos daqui conhecem como ninguém. É preciso ser muito alienado para achar que faz algum sentido brincar com uma realidade que ainda é tão aflitiva, dentro e fora do País.
Feito o estrago – questão de opinião, como defende o título desta coluna – de bom tom seria que a TV Bandeirantes retirasse imediatamente o personagem da atração e, sugiro, esclarecesse ao seu público o tamanho do desserviço prestado por seu pupilo.
Seria cômico, se houvesse bom senso e, sobretudo, graça. Não é o caso, em nenhum dos casos.
EM TEMPO:
Leia esclarecimento do Pânico, veiculado pela assessoria de comunicação do programa no final da tarde de hoje (10.8). A produção esclareceu ainda que o personagem sairá do ar.
“O Pânico em nenhum momento quis ofender ninguém, tanto que no quadro em que o personagem foi ao ar, o Pânico’s Chef, tem diversos outros personagens de diferentes etnias, japonês, nordestino, por exemplo, que preparam pratos típicos das regiões que moram, enfim, nenhum deles foi criado para ofender”
Deixe um comentário