A polêmica das vaias e o silêncio aos gritos de “bicha” na Rio 2016

O velocista jamaicano Usain Bolt pede silêncio, no início da prova de 100m
O velocista jamaicano Usain Bolt pede silêncio, no início da prova de 100m rasos. Foto: Reprodução / EBC

Noite de domingo olímpico no Rio de Janeiro, 14 de agosto. Usain Bolt estende o indicador direito nos lábios e pede silêncio no Engenhão. Num passe de mágica, o estádio não faz um piu. Bolt e seus futuros retardatários estão a postos, em suas raias, prontos para a disparada. Mesmo apinhado de milhares de pessoas, que ali estão para testemunhar a final dos 100 metros rasos da Rio 2016, o silêncio beira o sepucral nos quase dez segundos da prova, a mais tradicional dos jogos olímpicos.

Duas noites depois, no entanto, durante a final do salto com vara, da qual saiu vitorioso e recordista olímpico Thiago Braz da Silva, silêncio é artigo de luxo naquele mesmo Engenhão. Oponente do brasileiro, o francês Renaud Lavillenie é alvo de vaias, a cada novo salto, e não hesita em condenar o comportamento da torcida.

Desde então, o episódio é repercutido em redes sociais e em veículos da imprensa local e internacional. O mote do fórum? O direito ou não à vaia. No entendimento daqueles que ignoraram o pedido de silêncio do atleta francês e de outros competidores, de modalidades onde concentração também é pré-requisito para uma boa performance, certos esportes, como o salto com vara, são provavelmente tão ordinários quanto uma partida de futebol, daquelas que se vê num domingo qualquer no Allianz Park (Parque Antártica), na Arena Corinthians (Itaquerão) ou no Morumbi (o velho Morumba). 

Claro, passional, a torcida brasileira é capaz de se exaltar até mesmo em um campeonato de xadrez. Mas é preciso lembrar que a psicologia de massas que leva à vaia coletiva pode também ser vizinha da barbárie. Gesto corriqueiro nos campeonatos estaduais de futebol masculino e no brasileirão, o brado coletivo “ôoooo…. biiicha!!!”, por exemplo, também tem sido recorrente nesta olimpíada, durante os jogos da seleção canarinho, a cada vez que o arqueiro do escrete oponente lança a bola para o campo de ataque. O mesmo deve ocorrer na final do campeonato olímpico, na tarde do próximo sábado (20), quando o Brasil disputa a medalha de ouro contra a Alemanha.

Convenhamos, o bicha nosso de cada jogo, é bem mais feio que a mais polifônica vaia. E disso não falamos até esta reta final da Rio 2016. Os brasileiros ligados em futebol conhecem bem a gênese do urro. O inspirador do grito foi Rogério Ceni, goleiro recém-aposentado, famoso por sua trajetória no São Paulo Futebol Clube, time que leva a fama de “pó de arroz” e acolheu craques como Richarlyson e Raí, dois nomes patrulhados por aqueles que, nos fla-flus da vida, acham normal especular sobre a orientação sexual alheia e regozijam ao chamar alguém de bicha ou veado.

Do b de bicha ao b de barbárie – aquela que resulta em agressões e mortes, justificadas por cores de camisa, em estádios de Norte a Sul do País – a vaia olímpica é café pequeno. O assunto, no entanto, é velado. A cada jogo transmitido na TV, basta vazar o áudio da torcida a bradar “ôoooo… biiicha!” que o silêncio impera na boca de nossos comentaristas esportivos. Dias atrás, Megan Rapinoe, jogadora da seleção feminina de futebol dos Estados Unidos, repercutiu o gesto, considerado por ela ofensivo, no jornal Los Angeles Times. “É pessoalmente doloroso (a atleta é assumidamente lésbica). Creio que seja algo do comportamento coletivo que toma conta das pessoas.” 

Em meio à cobertura das quatro primeiras partidas da seleção, a imprensa local bem que podia ter alertado o torcedor brasileiro para o quanto esse grito de intolerância precisa ser questionado. Sábado, na possível revanche do escrete canarinho sobre a seleção alemã, teremos a chance final de falar sobre isso na olimpíada. Oxalá os comentaristas da Rede Globo, da Record e da Band, emissoras que detém a transmissão aberta da Rio 2016, percebam que combater a homofobia, em um veículo de comunicação que atinge milhões de cidadãos, é gesto tão nobre quanto lutar por medalhas de ouro.

Em tempo: em maio último, a Gaviões da Fiel iniciou uma campanha para dar fim ao “biiicha!” nos estádios. Um caso nobre de mea culpa. Afinal, foi essa mesma torcida que criou a manifestação, durante um jogo contra o Cruz Azul, do México, pela Libertadores da América de 2012. O mesmo clube, vai Corinthians, que depois emplacou o grito – depois multiplicado – sobre Rogério Ceni.


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