Uma pastora de poesia e prosa

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“De perto, é um novo dia”

Por vezes, sinto cheiros de nordestinidade quando leio alguns prosadores e poetas, mesmo aqueles que se mudaram para o Sudeste. É como se carregassem consigo as terras e águas do Nordeste, onde também lavaram suas letras. É que há um quê na textura de seus textos, não me perguntem o quê.

Micheliny Verunschk é um desses casos. Sua escrita tem um cheiro de mandacarus altos de arcos frondosos e verdes. Nascida em Recife, Arcoverde tomou-a. Diz ela: “Sou pernambucana nascida em Recife e criada em Arcoverde. Isso quer dizer que sou mais de Arcoverde, do que de Recife. Recife é acidente”.

Ela é autora de Nossa Teresa – Vida e Morte de uma Santa Suicida (Patuá e Petrobras Cultural, 2014), seu primeiro romance. Também é autora dos livros de poesia Geografia Íntima do Deserto (Landy, 2003), finalista do Prêmio Portugal Telecom, O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010). É doutoranda em Comunicação e Semiótica, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP.

A autora em Nossa Teresa tem um viço de boa escrivã na sua tessitura lexical e fraseado. É uma mulher que fere as palavras para resgatá-las de tal modo que nos fisga com seu texto. Ela conversa com o leitor, via um velho narrador, agarrando-nos pela goela, em suas histórias e causos dos santos – no caso, a mulher Teresa. Ele mostra, ou nos dá a entender que ser santo é ser gente, é ser humano. Receber a coroa de santidade é outra coisa. O velho contador de histórias é o causador da transmutação de alegorias. Sua guia, a autora, com sua prosa temperada pelo “bom vinagre, fogo e gelo”, como o personagem diz, nos entrega o real e o imaginário da existência, e, nisso, constrói uma literatura forte, que ultrapassa o viés regional.

Em Nossa Teresa, os flagrantes poéticos são intermitentes. Em sua poesia, Verunschk tem epifanias de arroubos – é uma poetisa que desliza exuberantemente no verso. Leiam:

Enfeite
Enquanto não vinhas
eu pastorava as brisas
e à noite juntava todas
nas cercas do meu sono.
Depois construía praças e jardins
com as palavras empilhadas sobre as cartas
com as cartas empilhadas sobre os dias
com os dias empilhados sobre o nunca.
Arquitetava outra engenharia do tempo
enquanto não vinhas
e nada, nada, era belo assim…
E mais:

Trabalho
Esta cidade
só é possível porque homens vindos
de todas as noites
urinam às cinco
seu fluxo amarelo
(e a germinam)
urinam ao meio-dia
seu fluxo esverdeado
(e a condenam)
urinam às dezoito e quinze
seu fluxo marrom
(esperma de pus e lodo)
seu fluxo escuro
(gozo de lixo e lama)
seu fluxo prateado
(rios e abortos de todas as partes)
e a adormecem.
E, por fim…

Lenda
A mãe era um bicho em sua toca. Comia estrelas
e lambia os filhos
com um mar tão intenso
que todos adquiriram presas de cristal.

*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial da área de Literatura, além de contista e poeta com livros publicados (paulovasconcelos@brasileiros.com.br).


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