A despeito do tom político que dominou o debate sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para transferir a idade de aposentadoria dos ministros do Supremo Tribunal Federal dos 70 para os 75 anos, a votação da nova lei suscitou – sobretudo no meio acadêmico já que os professores de universidades públicas serão, mais cedo ou mais tarde, atingidos por essa legislação – uma discussão sobre capacidade laboral, idade e envelhecimento. Afinal de contas, quando ficamos velhos na sociedade contemporânea?
A literatura psicológica, antropológica, gerontológica entre outras áreas do conhecimento há muito destaca o descolamento da idade cronológica da idade vivida. Envelhecemos mais e melhor no século XXI e isso impõe reflexões nunca antes presentes na História da Humanidade. Em meu livro “Viver Muito” chamo a atenção para o fato de as pessoas – principalmente aquelas que vivem da imagem – confundirem o envelhecer bem com o não envelhecer.[1]
Em “Philosophiedesâges de lavie”, ÉricDeschavanne e Pierre-Henri Tavoillot, professores da Université Paris-Sorbonne, lembram que a Modernidade permitiu tudo ao ser humano, mudar de nome, de aparência, de sexo e de nacionalidade, menos de idade.[2]As idades estão cada vez mais confusas, dizem os autores, e fora do paradigma tradicional. Dos jovens se cobra maturidade o quanto antes e dos velhos que continuem jovens por maior tempo possível.
Poucos reparam que há um contexto de liberdade envolvido nisso tudo. “O direito de cada um ser o que quer ser e não o que ele é”. Pode estar aí um grande foco de discórdia na sociedade. Essa dissonância das idades aguça o sentimento natural sublinhado por Albert Camus: “O ser humano é o único animal que se recusa a ser o que é”.[3]
Tavoillot e Deschavannetrazem ao debate uma categoria importante, a do “envelhecimento social”. Talvez esse fenômeno seja pior do que o próprio envelhecimento humano.[4] É por isso que a chamada PEC da Bengala tem tanta importância na sociedade contemporânea e para um país em processo acelerado de envelhecimento como o Brasil. É por isso também que nós, pesquisadores do tema, nos debruçamos sobre a questão da regulamentação das idades.
O marco legal do envelhecimento influencia o “envelhecimento social” e tem um impacto já comprovado na economia e no bem-estar da sociedade. Não existe trabalho científico definitivo sobre a relação da queda da produtividade laboral e a idade. A heterogeneidade do envelhecimento desafia qualquer constatação a esse respeito. Se um magistrado ou um professor universitário está em plena capacidade laboral para o exercício de sua função aos 70 anos, como pode o Estado lhe impor uma aposentadoria compulsória sob a justificativa, do paradigma antigo, de improdutividade? Mesmo aos 75, 80 etc.
Há alguns anos, pesquisadores da ONU discutem um novo marco legal para a definição do idoso – oficialmente aqueles com 60 anos nos países pobres e 65 nos países ricos. Aliás, a discussão abrange todas as idades. O jovem, se discute, seria aquele com até 45 anos. A ciência ao inventar técnicas como as que produziram as “mães na menopausa” ajuda a embaralhar ainda mais essas cartas marcadas.
A economista Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em 2013, provocou com uma proposta de redefinição da idade do idoso brasileiro de 60 para 65, chamando a atenção para a verdadeira esquizofrenia das legislações brasileiras – algumas leis protegem o cidadão de 60 e outras o 65. Outras exigem a comprovação de incapacidade para o certo número de atividades da vida diária.
“Considerando umaestimativa de esperança de vida aos 65 anos de 19,7 anos em 2010, essa idade propostadefine, também, uma longa fase da vida, o que ainda tornará esse grupo heterogêneo”, escreve Ana Amélia ao defender uma mudança no Estatuto do Idoso.[5]
Ao considerar o peso da “expectativa de sobrevida” – o mesmo conceito levado em conta no cálculo do fator previdenciário, por exemplo -, a pesquisadora encontra-se com outros estudiosos internacionais que vão além: querem outro conceito não para idoso, mas para o envelhecimento populacional.
Esse fenômeno demográfico, como se sabe, é o aumento do percentual de idosos na população devido à redução da taxa de fecundidade (número de filhos por mulher). Até hoje esse é um dos principais indicadores para definir um país como envelhecido – ao lado do índice de envelhecimento (número de pessoas com mais de 60 por cem indivíduos com menos de 15 anos).
Warren Sanderson e Sergei Scherbov, pesquisadores do InternationalInstitute for AppliedSystems Analysis, da Áustria, defendem medir se a população de um país está envelhecida pela taxa de sobrevida.[6]Em resumo, se um percentual da população alto atinge uma expectativa de sobrevida de 15 anos, poderíamos considerar o país envelhecido.
Se aplicarmos a metodologia de Sanderson e Scherbov, em vez de Japão, Alemanha e Itália liderarem a lista dos países mais envelhecidos do planeta (como é hoje de acordo com a taxa de dependência descrita acima), teríamos uma inclusão da Ucrânia e da Bulgária.[7] Aliás, os países do leste europeu entrariam na lista dos mais envelhecidos, embora tenham taxas de expectativa de vida menores do que as dos países da Europa Mediterrânea. Como se vê por este exemplo, ser velho depende muito do ponto de vista de cada um.
O mais relevante de toda essa discussão é ter a consciência de que se acreditamos na economia da longevidade como uma alavanca para o desenvolvimento econômico, tal qual o mundo está fazendo e já com certo sucesso, a definição de idoso passa a ser estratégica. Um dos fatores de risco para essa empreitada é, por um lado, o preconceito (o idosismo), e, por outro,o excesso de otimismo, isto é, a negação da velhice. O desafio diante de nós é encontrarmos o equilíbrio, pois é aí que está a chave da riqueza de se viver muito.
*Jorge Félix é especialista em economia da longevidade, jornalista, professor e mestre em Economia Política pela PUC-SP. É autor do livro “Viver Muito” (Ed. Leya). www.economiadalongevidade.com.br
[1] Capítulo 7: “Por que a Suzana Vieira – embora ela não acredite – também vai envelhecer e quanto isso custa para a sociedade, segundo os cálculos de uma ministra da Grã-Bretanha”, págs. 105-115.
[2]Philosophiedesâges de lavie – pouquoigrandir? Pourquoivieillir, Grasset, 2007 (542 págs.). Pág. 26.
[3] O homem revoltado, Albert Camus, Ed. Record, 2ª edição, 1996.
[4] Pág. 252.
[5]“Estatuto do idoso: avanços com contradições”, Ana Amélia Camarano, Texto para discussão nº 1840, Ipea, 2013.
[6] Rethinking age and aging, Warren Sanderson e Sergei Scherbov, Population Bulletin, Population Reference Bureau, v.64, nº 4, 2008.
[7] Os dados da pesquisa são de 2005.
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