As primeiras pessoas que chegarão aos 150 anos já estão entre nós. Não é exagero ou futurologia. Alguns centenários de hoje nasceram no fim do século XIX e, naquela época, ninguém falava em longevidade. Pelo contrário, a Humanidade sentia-se sobrevivente em meio à violência, guerra e, sobretudo, às pestes. Vidas longevas como a da mexicana Leandra Becerra Lumbreras, com 127 anos comemorados no ano passado, fez surgir na imprensa e na literatura demográfica os termos supercentenários, superenvelhecimento ou, como arrisco aqui, o hiperenvelhecimento.
Poderíamos filiar o conceito às teses da Era Moderna e a suas inúmeras interpretações sociológicas e filosóficas, que culminaram na Hipermodernidade de Gilles Lipovetsky. Viver muito, mais de um século, nessa fase da História, é o grande desafio do Homem do século XXI. A resposta à pergunta acima passou a inquietar a existência contemporânea. Como planejar em tempos tão incertos?
Em palestra, na semana passada no Sesc Carmo, em São Paulo, mais uma vez, me deparei com a pergunta que, invariavelmente, surge à minha frente em todas as plateias. Ela sempre vem contaminada pelos fatos, suposições ou ruídos da conjuntura econômica. Desta vez, claro, estava recheada pelo “jornalismo de multidão”, essa nova prática a dominar a imprensa em sua concorrência com as redes sociais. Os temas da vez a perturbar as interpretações do cidadão são o caso Petrobras e o boato criminoso de um suposto novo confisco da caderneta de poupança.
Os idosos estão sendo as maiores vítimas dessa assimetria de informação, afinal, quando o assunto é finanças pessoais, o tempo lhes é ainda mais desvantajoso. Ainda mais porque as metamorfoses econômicas, sociais e políticas da Hipermodernidade pegaram-lhes de surpresa. A Modernidade prometia previsibilidade. A ciência, inclusive a econômica, daria conta de tudo e mitigaria os riscos da vida. Quando eram jovens, ouviram que os governos democráticos conheciam as regras da gestão econômica. Durou pouco.
O consenso Keynesiano foi derrubado depois de apenas três décadas pelos choques do petróleo devolvendo o mundo ao reino da instabilidade – de onde o capitalismo, na verdade, nunca havia se exilado por completo. O Estado do Bem-Estar foi vencido, então, pela nova promessa da desregulamentação financeira, pela ilusão das soluções endógenas de mercado. O neoliberalismo vendeu à geração agora envelhecida (os baby boomers) uma tal de “estabilidade econômica”, hoje se sabe, com as técnicas de um carcamano.
No século XIX, quando nasceram os primeiros centenários, vivíamos, segundo Marshall Berman, a segunda fase da Modernidade.[1] Se na primeira (nos séculos XVI a XVIII), as pessoas mal faziam ideia, como ele diz, “do que as havia atingido”; no XIX, o público vivia em dois mundos. Ora em explosivas convulsões em todos os níveis de vida, ora nostálgico porque ainda se lembrava do que era viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chegava a ser Moderno por inteiro.
Um mundo no qual a ideia de excedente econômico era apenas um esboço do que viria a ser. Agora vivemos a totalidade? Ou o hiper? Revolucionário, sob o ponto de vista das transformações tecnológicas, e incompleto sob o jugo das promessas da Modernidade, principalmente a autonomia (intelectual, política e econômica), o individualismo e a liberdade?
Envelhecemos num mundo cujo lema mais representativo é “Não está fácil para ninguém”. A saída é estar sempre ao lado de uma tomada, conectado, estar sempre ampliando sua potência cultural, intelectual, financeira e, acima de tudo, negar o envelhecimento? Confundir o bom envelhecimento – uma promessa atendida pela Modernidade por meio do avanço da ciência – com o não-envelhecer? Talvez diante do desespero de descobrir que a juventude, antes tão sólida, desmanchou no ar, o que resta é um berro de “ainda sou jovem” ou “nunca serei velha”.
É a única forma de enfrentar o preconceito, intensificado por aqueles que vêem no idoso um indivíduo que insiste em ocupar um espaço “reservado aos jovens”. Na última semana, o fato mais ilustrativo desse fenômeno foi a declaração de Yoko Ono, defendendo seu direito de dançar de short aos 81 anos. Essa postura é consequência de uma certa mentalidade de que somente a youngpower é capaz de vencer em uma sociedade, segundo alguns sociólogos, da barbárie, na qual a ordem é eliminar não só os fracos, como os diferentes. Uma octogenária de short, dentro deste encarceramento social, é inaceitável.
A mentalidade do youngpower ignora a instabilidade crônica e, no âmbito econômico, se manisfesta culpando o mau investimento por falta de educação financeira. Quem investiu na Petrobras para a sua velhice é visto como o coitado, desinformado e vítima da corrupção política. Ninguém menciona a impotência da maioria da população – jovem ou não – de vencer as agruras da Modernidade, da mundialização e de seu estágio de hipertrofia financeira. Ninguém menciona a mutação da aposentadoria como direito em prêmio, reservado àqueles bonificados e negada aos assalariados. O “moderno” é trabalhar até o fim da vida.
Em um “mundo líquido”, como define os nossos dias o sociólogo Zygmund Bauman, onde os sólidos derretem do dia para a noite (que o diga Eike Batista) uma última tentativa de planejar é inventar também uma velhice líquida. É uma maneira de despreocupar-se e viver apenas o presente. Impossível. Com a hipermodernidade, o Homem já pode alterar sua nacionalidade, seu sexo, sua família, sua formação genética e ser filho de três pessoas. A única característica que jaz sólida é a idade.
Diante da dificuldade de previsão em meio à incerteza, do sentimento de impotência de cobrar o seu bem-estar de um ambiente político dominado pelo script de “House of Cards” e de um mercado ganancioso, como planejar uma velhice de 20, 30 ou até 70 anos, no caso de uma vida de um século e meio? A inteligência humana, a razão, a ciência, a capacidade de inovação, de viver em comunidade e outros valores estão em xeque-mate nesse xadrez do século XXI.
[1] BERMAN, Marshall – Tudo que é sólido desmancha no ar, a aventura da modernidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1981.
*Jorge Félix é especialista em economia da longevidade, jornalista, professor e mestre em Economia Política pela PUC-SP. É autor do livro “Viver Muito” (Ed. Leya). www.economiadalongevidade.com.br
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