Não há inocentes na política internacional. Se aparecer algum, será imediatamente devorado, junto com os ingênuos.
Ali também todo mundo mente, em alguma medida, quase todo o tempo.
Nós, aqui de fora, tentamos adivinhar nas reentrâncias dos discursos mais ou menos bem urdidos a real intenção da raposa, o próximo passo do lobo, o bote da cobra, o truque que está a armar a hiena enquanto esfrega as patas e abre seu sorriso.
Não só não temos acesso à verdade por trás das palavras; tampouco temos como apreender a total realidade do que se passa nos vários campos da ação, nos vários teatros, alguém diria.
Estamos condenados a montar quebra-cabeças incompletos com fragmentos de informação e com aquilo que arrancamos das entrelinhas dos muitos discursos que nos são servidos. Fazemos nossas melhores apostas.
Essa tem sido a nossa sina também em relação à Síria, nos últimos cinco anos.
Os jogos ali continuam abertos; a imagem que nos revelaria o quebra-cabeça se um dia o viéssemos a completar muda a cada instante.
No último lance, em Viena, sob a condução de Estados Unidos e Rússia, reuniu-se uma parte daqueles cujos gestos e palavras espreitamos e tentamos decifrar. Foram a isso levados, em parte ao menos, pelos efeitos da entrada em força da Rússia no conflito armado.
Diz-se que há um acordo de princípio sobre o que deve ser o futuro: a manutenção da unidade territorial da Síria; a construção de um sistema democrático apoiado em instituições fortes; a laicidade do Estado.
Ainda que mintam, se mentem, descrevem a Síria que se deve sonhar.
Nada menos se deve querer que emerja depois de tanta dor, tanto sangue.
Uma Síria íntegra territorialmente é a derrota do projeto de fragmentação do mundo árabe em pseudo-nações sectárias, étnicas ou religiosas. É uma Síria de todos os seus cidadãos, muçulmanos, cristãos, curdos. É uma Síria que comporta a pluralidade dentro de sua identidade una.
Uma Síria de instituições é um país que se liberta da necessidade, da inevitabilidade dos homens únicos salvadores.
Uma Síria laica, ainda que multirreligiosa é a garantia da igualdade de todos perante o Estado.
*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.
Deixe um comentário