Tipos macabros: número 1

Coluna_header_ topo Auro Danny Lecher
Foi só então, no dia da festa dos seus 80 anos, que ele colocaria em prática o que nunca duvidou que fosse capaz de fazer.

Mataria seu filho naquela tarde.

Ele é um dos mais respeitados juristas do País, famoso (notável) por ter ajudado presos políticos que durante a ditadura nenhum outro advogado ousava defender. Referência internacional no tema dos Direitos Humanos. Honrado conselheiro de poderosas personalidades da República.

Nas internas, bem nas internas, ele mantinha dentro de si, de uma forma pacífica (tranquila), o desejo de matar alguém.

O plano original não era matar seu filho, mas os acontecimentos precipitaram sua execução.

Ele ainda estava enxuto, elegante (ático), sua velhice andava bem generosa (tolerante). A cabeça, uma maravilha, consegue conciliar todas essas décadas de brilho acadêmico, político e familiar (ele é muito feliz com sua esposa, Dona Lara, seus três filhos legítimos e seus 9 netos) com a espera paciente do momento certo, que mais cedo ou mais tarde chegaria.

Uma licença ética: matar alguém que mereça morrer desde que seja um crime perfeito.

Esta ideia o entusiasmava desde a adolescência, quando secretamente, entre um folhetim erótico e outro, dedicava-se à leitura de Minha Luta, versão em inglês do livro de Adolf Hitler (os adolescentes de hoje já podem lê-lo em português), que seu tio Percival havia lhe dado quando completara 15 anos, com as veementes orientações de que sempre lesse sozinho e mantivesse o segredo sobre o presente.

Ele nunca teve dúvida  que o  tempo chegaria.

Foto: Ingimage
O plano original não era matar seu filho, mas os acontecimentos precipitaram sua execução. Foto: Ingimage

Quando, há um mês, o sujeito bonachão, aparentando ter 60 anos, de bochechas róseas e óculos fundo-de-garrafa, veio dar-lhe a notícia de que era seu filho (de uma aventura sexual da juventude), que vivia sozinho, que sua mãe morrera no Natal do ano passado e que não queria nada além de finalmente conhecer seu próprio pai, num átimo, subiu-lhe o arrepio pela espinha.

Ele marcou o segundo (e último) encontro para dali a 30 dias: almoçaram juntos e depois de matá-lo com um tiro na nuca, desovou o cadáver num poço abandonado de um sítio longínquo.

Chegou em casa às 19 horas. Tempo suficiente para tomar um bom banho antes que os convidados começassem a chegar.

Enquanto enxaguava a cabeça, pensava se aquela nuca era mesmo a de seu filho.

*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   aurolescher@gmail.com 


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