Toda água do mundo eu invento.
Talcahuano significa Céu Trovejante no dialeto Mapuche. É uma cidade portuária banhada pelo Oceano Pacífico, no Sul do Chile. Os trovões, que roncam pelos séculos sobre as cabeças dos habitantes de Talcahuano, são a sonoplastia de um rico universo mitológico: peixes enormes com várias cabeças e olhos de diamantes que devoram o pescador, sereias que entorpecem o navegante para sugar seu sangue e seu sêmen; os deuses fazem chover e molham as plantações que alimentam seu povo.
Água da chuva que vem de cima.
O Lago Concepción é sagrado para a comunidade local e esconde em suas profundezas todo o ouro ancestral dos Mapuche. É também a rota de fuga para os nativos quando o mar que costuma ser pacífico se rebela, de tempos em tempos, ameaçando a planície, repleta de pousadas e casas de veraneio para turistas o ano inteiro. Fica na parte mais alta da cidade e a vista que se tem de lá é deslumbrante, ou apavorante, dependendo do que se vê. Lago que mata a sede e salva vidas.
Água do lago que vem de baixo.
Já faz 5 anos desde que o dragão furioso cuspiu seu fogo pela última vez, de um epicentro no fundo do mar, das entranhas da sinistra Isla del Diablo. Seguiu-se uma onda gigante que transformaria toda a região costeira num inferno austral.
Água de tsunami que vem de lado.
Das margens do lago via-se lá embaixo, a poucos quarteirões de distância, primeiro os turistas desorientados, em frente de suas casas sem saber o que fazer. Depois, quando viram que todos os moradores do vilarejo tinham corrido, entraram em pânico e tentaram fugir em seus carros. Mas aí houve um engarrafamento e a onda chegou neste instante. Dezenas de carros buzinavam ao mesmo tempo e piscavam as luzes. As águas começaram a levá-los…gradualmente. As luzes dos carros apagaram-se. E também as buzinas. Os sobreviventes choram os seus mortos.
Água de lágrimas que vêm de dentro.
*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote aurolescher@gmail.com
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