Um Mário Múltiplo na Flip

Muito elegante, Beatriz Sarlo começou sua fala aproximando os movimentos modernistas de Buenos Aires e São Paulo na década de 1920. Para ela, em comum, os escritores de ambos lugares – e aqui ela inclui especificamente Borges, Oliverio Girondo e Mário de Andrade – buscavam respostas muito definidas a essa quase quimera que é a pátria. Tirando isso, disse, são completamente diferentes. Ao lado festivo, carnavalesco da obra de Mário, ela opõe a amargura dos argentinos; às viagens pelo Brasil profundo de Mário, ela contrapõe as viagens a Paris dos argentinos (e o sedentarismo portenho de Borges). Mas encontra uma semelhança em Don Segundo Sombra, obra de Ricardo Güiraldes, de 1926, e Macunaíma, de 1928: os dois livros definem, a seu modo, uma identidade nacional. Sarlo também vê pontos de encontro entre “Paulicéia Desvairada” e a poesia de Girondo.

Não menos elegante, Eliane Robert Moraes falou da “erótica tão inesperada quanto intensa, sugestiva mas provocante, decente mas maliciosa” na obra do autor de Amar, Verbo Intransitivo. Lembrou do material coletado pelo escritor e intelectual nas viagens que fez pelo Brasil: quadrinhas de autores anônimos que surpreendem pela sutileza e engenhosidade ao dar forma ao proibido. Disse, justamente, que Mário vencia o que é calado “pela artimanha da palavra”. E em seguida leu um trecho do capítulo dez de Macunaíma, fazendo uma análise inspirada da palavra “puíto”, de origem indígena, que significa ânus. Ao final, mencionando a tão comentada homossexualidade do autor, disse que ela não podia ser ignorada, mas que sua obra não podia ser reduzida a esse aspecto.

De óculos e um rosto que faz lembrar o pintor Lucien Freud, Eduardo Jardim, que está lançando a biografia Eu Sou Trezentos (Edições de Janeiro), tocou em três pontos na história pessoal de Mário: sua “figura poliédrica”, que por vezes buscava a anulação do ego pela prática da “gostosura niilizante”; sua bivitalidade, em que se autodividia em “vida de cima” e “vida de baixo”, com tensões entre inspiração e crítica, nacional e universal, erudito e popular, compromisso social e acentuada individualidade, Amazonas e Tietê; e o final melancólico, quando se deixou levar pelo desgosto com uma sequencia de insucessos na vida.

Quando foi ler “Meditação Sobre o Tietê”, último poema de Mário, Jardim se viu interrompido pelo próprio escritor, interpretado pelo ator Paschoal da Conceição, que desceu os degraus da Tenda Principal da Flip com terno branco e um buquê de flores bradando os versos com entusiasmo e encerrando, assim, a primeira noite da Festa em Paraty, sob os aplausos e a perplexidade (positiva) do público e da organização.


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