Assistir a um musical exatamente em meio à maior e mais grave crise hídrica de São Paulo e de corrupção pelo País poderia até soar como “alienação” ou representar um significativo gesto de desprendimento da realidade como forma de fugirmos dela. Exceto se estivermos falando do teatro como modo de pensamento crítico e de reflexão (e o teatro sempre é forma de reflexão, para quem não sabe!), especialmente se esse espetáculo propuser dentro de seu drama justamente a discussão acerca da corrupção que impera no País e dessa falta de políticas públicas – ao longo das últimas décadas – destinadas para o dito uso racional da água. Um espetáculo, portanto, extremamente oportuno para o momento.
Urinal, o Musical conta a história de uma certa cidade que vive uma desgraça tamanha decorrente da falta de água, chegando ao cúmulo de exigir que as pessoas paguem para ir ao banheiro, punindo com a pena de morte aquelas que violarem tal preceito. Um horror que se torna ainda mais grave quando a companhia controladora dos banheiros públicos resolve aumentar os preços de seu uso. E as leis estabelecidas nesse lugar não só permitem o aumento das tarifas como também dão mais poderes para a empresa continuar obtendo lucros exorbitantes em detrimento do povo desesperado por uma solução. E as tais leis são sempre garantidas pelo senador corrupto, que tem por objetivo preservar o caos, manter sua “mesada” e, com ela, poder morar em Miami, onde não falta água. Com isso, a revolta popular começa a tomar força e surge a liderança que tenta enfrentar o problema. Esse jovem líder, contudo, tal qual em Romeu e Julieta, se apaixona pela filha do dono da maldita empresa controladora. Diferente de nossa realidade atual, portanto, somente a história de amor, pano de fundo, bem secundário, desse verdadeiro drama.
O texto é do dramaturgo americano Greg Kotis e as músicas originais de Mark Hollmann, cujas versões para o português foram feitas por Fernanda Maia e pelo diretor Zé Henrique de Paula, supervisionados por Claudio Botelho. A peça foi escrita em 2001, logo após a grande crise da água em Nova York, que previa uma catástrofe urbana caso as autoridades não tomassem providências rápidas e estabelecessem grandes e pequenas soluções para economia, além do uso racional da água em curto e longo prazos. Mas apesar de várias providências, de fato, terem sido tomadas ali, ainda assim, a mera possibilidade de um problema maior e irreversível inspirou o autor a escrever a peça Urinetown, que hoje cai como uma luva para a situação dramática pela qual estamos passando no Brasil.
O musical chegou a ser considerado uma comédia nos Estados Unidos, mas aqui, apesar de cenas com ironias, caricaturas e humor ácido, se revela um drama.
O que chama a atenção nesse musical, vale a pena frisar, é que se trata de uma produção relativamente grande, com um elenco de 13 atores em cena, além da orquestra com nove músicos também em cena. E tudo isso no muito aconchegante Teatro do Núcleo Experimental, que é bem pequeno e requer muita inteligência artística para fazer com que tudo caiba no espaço cênico e de forma esteticamente bonita. Consegue isso o diretor Zé Henrique de Paula com estruturas e recursos dramatúrgicos muito bem pensados. A pequena orquestra fica alocada em uma plataforma, ao fundo do palco, que é usada para separar os dois núcleos dramáticos e por onde se revezam as ações: as dos poderosos e as do povão. Assim, o diretor usa todo o espaço, até a área do chão abaixo do palco, como se fosse um teatro de arena, para constituir as cenas, inclusive (e talvez principalmente) naquelas em que se entrelaçam. Tudo muito bem aproveitado e bonito.
Mas essa beleza toda poderia ser inútil não fossem as interpretações fantásticas de todos os artistas. Uma entrega absoluta de cada um. Estão muito bem os atores Gerson Steves, como o senador corrupto, e Roney Faccini (indicado ao Prêmio Shell de Melhor Ator por seu trabalho, no ano passado, em Ou Você Poderia me Beijar), como o dono da empresa controladora da água. Mas estão realmente sensacionais Caio Salay e a atriz Bruna Guerin, que formam o casal romântico protagonista, além do policial narrador, o ator Daniel Costa, que interpreta, canta, dança, sapateia e rouba a cena.
Também é muito importante destacar que esse espetáculo, realmente lindo, foi produzido com dinheiro do Prêmio Zé Renato, concedido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, comprovando assim, mais uma vez, que projetos que primam pela excelência artística, vencedores de programas públicos de fomento (como o Prêmio Zé Renato) conseguem ficar em cartaz ao lado das chamadas“megaproduções” sem dever nada a essas outras… Muito pelo contrário… Isso porque o valor do Prêmio Zé Renato para essa produção foi de exatos R$ 198.935, ou seja, cerca de dez, 20 ou 30 vezes menos do que os valores previstos em projetos de outros musicais financiados pela política da renúncia fiscal (como, por exemplo, a Lei Rouanet, que aprovou um projeto de teatro musical, atualmente em cartaz na cidade, no valor de mais de R$ 14 milhões, dos quais R$ 12,7 milhões efetivamente captados). Ou seja, Urinal conseguiu fazer um projeto que custou literalmente 63 vezes menos e que é, no mínimo, 63 vezes melhor do que o outro, caríssimo. Além disso, lembremos, o preço do ingresso é incomparavelmente mais acessível que os ingressos desses musicais, ditos “grandes”, sem falar, ainda, que nessa temporada, ao menos uma vez por semana, a apresentação de Urinal é gratuita.
Esse espetáculo demonstra, portanto, que além de seu próprio título, impróprio para um espetáculo comercial (como os atores chegam a ironizar em cena!), a crise hídrica e a corrupção que vivemos atualmente são apenas algumas das adversidades que o teatro do está escancarando… E não, definitivamente não, deixe de ver a esse espetáculo só por causa de seu título…
Urinal, o musical
Teatro do Núcleo Experimental – Rua Barra Funda, 637 – Barra Funda – São Paulo.
Até 6 de julho. Segunda, sexta e sábado, às 21 horas.
*Evaristo Martins de Azevedo é crítico de arte, membro da comissão de teatro e conselheiro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e jurado do Prêmio Shell de Teatro.
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