Até 1989, atravessar o Muro de Berlim era uma viagem no espaço e no tempo. Em Berlim Oriental, a vida corria devagar, em preto e branco. Mesmo nos arredores da principal praça, a AlexanderPlatz, as avenidas e ruas eram supertranquilas. Além de ônibus e bondes, circulavam poucos carros, em geral Trabants, produção local que depois virou sinônimo de carroça. Mas em meados dos anos 1980, quando cruzei várias vezes o muro, ter um Trabant era o máximo.
Do outro lado da cidade, o cenário mudava de forma radical, a começar pelo ritmo frenético, infinitas cores e muito apelo ao consumo. Cruzar a fronteira pelo checkpoint da Friedrichstrasse, mais conhecido como Checkpoint Charlie, dava sempre a sensação de voltar ao presente. As vitrines da Friedrichstrasse exibiam tudo e mais um pouco do que faltava na parte “comunista” da Alemanha.
O curioso é que meus amigos de Berlim Ocidental pouco se lixavam para grifes de roupa ou marcas de carro. Era gente muito nova, nascida em outras cidades da Alemanha “capitalista”, que aproveitava as delícias de estudar ou trabalhar na metade de Berlim cercada pela Alemanha “comunista”. Eles moravam em casas enormes, com muito subsídio do governo: faculdade, aluguel, eletricidade, água, telefonia.
À Alemanha Ocidental interessava ocupar o espaço que lhe coube na divisão de Berlim. E dá-lhe incentivo para a rapaziada! Embora tenha se tornado um enclave por quase 30 anos, a cidade jamais perdeu a atmosfera cosmopolita. Só ficava um pouco assustadora quando, do nada, apareciam figuras da linha neonazista. Eram grupos pequenos, mas pesavam o ambiente. Não tinham nada a ver com os punks, frequentes na cena noturna da cidade.
Reflexos da cultura punk também existiam em Berlim Oriental, no visual de rapazes e moças que ocupavam a AlexanderPlatz no final da tarde e à noite. Usavam cabelo moicano e poucos acessórios. Na verdade, os punks do lado oriental davam uma customizada nas roupas à moda soviética disponíveis nas lojas estatais. E, muito além de afinidades culturais, queriam mostrar aversão ao regime que limitava seus movimentos. Isso, bem debaixo da Torre de Tevê que ainda domina o horizonte, com mais de 360 metros de altura e uma imensa esfera metálica inspirada no satélite soviético Sputnik.
Ao contrário do outro lado do muro, em Berlim Oriental faltava moradia. Quem estudava lá e não fosse da cidade, tinha como única opção morar em complexos da própria universidade. Eram muito parecidos com os de Varsóvia, na Polônia, onde eu estudava. Prédios só para estudantes. Cada andar tinha um número “x” de quartos, além de cozinha e banheiros coletivos.
A mobília desses complexos era igualzinha à que aparece no filme Adeus, Lênin!, de Wolfgang Becker. Padrão soviético. A heterogeneidade ficava por conta dos estudantes: gente do mundo inteiro, boa parte sem o menor vínculo com os partidos comunistas de seus países, mas com muitos planos para o futuro. Não cheguei a conhecer direito o lado oriental de Berlim, embora adorasse visitar o Museu Pergamon.
Nos tempos do muro, eu só podia ficar em Berlim Oriental por 24 horas. Meu passaporte daquela época tem uma porção de carimbos da DDR (Deutsche Demokratische Republik). Menos mal que eram pequenos. Não ocupavam toda uma folha do passaporte, como o carimbo da extinta Tchecoslováquia. De qualquer forma, tinha que passar pela barreira da burocracia.
Para cada viagem, precisava requisitar um visto de trânsito e justificar o pedido. Toda vez, dava à embaixada da DDR a mesma justificativa: vou pesquisar no Instituto Ibero-Americano, em Berlim Ocidental. Como fazia o percurso Varsóvia-Berlim de trem, descia no lado oriental, passava as minhas merecidas 24 horas, e depois atravessava o muro para a temporada ocidental. Na volta, era só repetir a dose.
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