O psiquiatra Auro Danny Lescher inaugura hoje, 15, a coluna Seis Sentidos. A cada 15 dias, ele vai publicar neste espaço uma crônica envolvente, como se estivesse em uma conversa informal com o leitor. Vai ser fácil se identificar com o texto. Aproveite!
Como disse o poeta, eu também não consigo caminhar sem logo ir pensando.
Cada pensamento cria um campo gravitacional que atrai outro pensamento e assim vou traçando um caminho. Já no terceiro passo, começo a pensar e com meu ímã vou abrindo uma trilha. Ela pode me levar a um belo lugar, posso me perder num labirinto ou acabar num beco sem saída.
Avante! Confio nas bússolas, nos deuses e nas birutas. Afinal, o caminho se faz ao caminhar. O percurso é tão importante quanto o destino.
Eu consigo controlar (mais ou menos) o quanto devo entrar numa trilha dessas; e com que ritmo.
Esse controle que consigo ter em relação aos pensamentos, eu não consigo ter em relação a cada um dos meus cinco sentidos.
As informações do mundo exterior são percebidas por aparelhos especializados em captar imagens, odores, sabores, sons e tatos; tão diferentes quanto complementares entre si. Elas são identificadas e filtradas pela consciência. Daí vem a tecelagem: as infinitas combinações possíveis de cada uma dessas informações com as referências emocionais guardadas na memória, recentes ou longínquas.
Se estou no meu caminho e ouço Here Comes the Sun sou imediatamente catapultado ao dia do meu vigésimo aniversário. Se minhas narinas identificam vestígios de sândalo no ar sou arremessado à nostalgia do meu primeiro amor ou às margens do Rio Ganges num ritual de cremação, dependendo se meu espírito estiver mais romântico ou mais fúnebre.
A trilha me levou a um belo lugar: pensei que um sexto sentido poderia ser o próprio sentimento, ou sentimento próprio.
Como acontece nos outros cinco sentidos, neste eu também não controlo o que sinto. Simplesmente sinto. A única diferença para os outros cinco sentidos é que esse aparelho de sentir sentimentos capta as informações do mundo interior. Do mundo de dentro.
Dito isto, posso me apresentar afirmando que usarei todos os meus seis sentidos para garimpar pérolas na poeira do cotidiano. Vou me esforçar para dar-lhes forma e graça nas minhas colunas na Brasileiros. Quem sabe, no final de uma temporada, terei um colar, não apenas com pérolas, porque pérolas são raras e meu colar também é feito de conchas, junco e apuí. É claro que, entre uma coisa e outra, há de se encaixar alguma dor aguda, minha ou do mundo. Mas, se isso acontecer, a responsabilidade deverá recair exclusivamente sobre as minhas irracionalidades, que não são poucas, porque, em linhas gerais, a ideia é que as colunas possam contar com a bênção das ninfas, do Humberto Werneck e do Marcelino Freire, e assim acabem ficando menos dolorosas e mais crônicas.
*Auro Danny Lescher é psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote aurolescher@projetoquixote.
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