A lombada eletrônica do terceiro jardim

As sombras dos prédios de Boa Viagem são emblemáticas da questão mais premente da cidade: a gentrificação. Adriana Komives
As sombras dos prédios de Boa Viagem são emblemáticas da questão mais premente da cidade: a gentrificação. Adriana Komives

Todos os prédios se parecem, altos, soldados erguidos no front marinho, ao longo dos 8 quilômetros da Praia de Boa Viagem no Recife. A alta sociedade tomou para si a vista sobre o mar, excluindo dali a população de pescadores, os banhistas tranqüilos do fim de semana, e criou com propriedade privada um paredão de janelas para o mar. Em um desses prédios encontra-se o hotel em que fiquei. Realmente, a vista do 17° andar é incrível. Ver assim o sol despontar de dentro do oceano às 5 da manhã, sua cor turquesa ao meio-dia, os grandes navios ao longe, o ir e vir das ondas, as pessoas feito formiguinhas na praia, o metal dos carros brilhando na Avenida.

Mas ao cair da tarde, o que é aquilo ? Sombras gigantes avançam sobre a areia, como invasores indo em direção ao mar. As barracas da praia se recolhem, os renitentes puxam suas cadeiras para as frestas de sol que passam entre um prédio e outro, criando línguas de luz na areia escurecida pelas sombras. É o tiro saindo pela culatra. Os habitantes dos prédios de alto padrão padecem em sua própria escuridão.

Pergunto ao motorista do taxi que referência devo dar quando voltar para Boa Viagem, pois não vejo um restaurante, um bar, um ponto que se distinga, para mim é tudo igual, e não conheço o nome das transversais. O homem me indica com toda certeza que se eu disser a “lombada eletrônica do terceiro jardim”, qualquer motorista saberá de que ponto da Avenida estou falando. Acredito nele, porque não iria acreditar ? Quando orgulhosa da minha integração na cidade indico para o próximo taxi a dita lombada, ele não tem idéia de onde seja. Lombada eletrônica, que lombada é esta ? Será que ele passa correndo e não vê ? O que é referência para uns é ignorado pelos outros. Não há uma linguagem comum nesta sociedade padronizada. O mundo esterilizado da burguesia brasileira me assusta. As sombras dos prédios de Boa Viagem são emblemáticas da questão mais premente da cidade: a gentrificação.

Ali ao final da praia, depois do Pina, está Brasília Teimosa. Reduto popular frente ao mar, a comunidade iniciada como uma ocupação, protegida por Dom Helder Câmara, é hoje “protegida” pela JPCM, grande empresa de construção da cidade, que possui shoppings e que tem ao pé de Brasília uma imensa torre empresarial. A JCPM tem “compromisso social” e por isto promove no bairro concursos de dança cujo prêmio é uma compra de 1000 reais em um supermercado do próprio grupo, isto é, o dinheiro dado volta para o donatário. E o que são mil reais para uma construtora nacional ? Em Brasília Teimosa até uns anos atrás não havia água encanada nem esgoto e hoje há, fornecida pela Odebrecht. Mas em Brasília Teimosa, nenhum morador tem titulo de propriedade e a qualquer hora, pode haver desalojamento, e o último reduto popular à beira-mar pode desaparecer do Recife, e com ele o Maracatu, a escolinha de frevo, os pescadores com seus últimos barcos e o céu sobre a cidade do Recife Antigo.

A fome daqueles que possuem o Brasil não tem limites e um dia, a sombra há de comer o mar


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