Se eu tivesse sabido antes, não teria passado tantos anos sem pular o Carnaval. Já tinha ouvido falar daquele de Dunkerque, de suas cores em pleno inverno, mas até este ano, não tinha tido a oportunidade de participar dessa festa desvairada. Graças ao Bloco do Wassangang, no fim de semana passada, pude ter um gostinho desse verdadeiro delírio coletivo e autêntico do norte da França. Não em Dunquerke, onde o Carnaval acontece ao mesmo tempo que no Brasil e em Veneza, mas em Bergues (e na pequena cidade vizinha, Houtkerque), que fica na Flandre, região fronteiriça da Bélgica, que se estende até a Holanda. O carnaval de Bergues (ou a Banda de Bergues, como eles dizem), acontece um mês depois do carnaval oficial.
As origens da festa remontam ao século 17. Os armadores enviavam os marinheiros para pescar durante seis meses na Islândia, para trazer de lá bacalhau e arengue. Era uma pesca difícil, muitos deles não voltavam, deixando viúvas e órfãos em terra firme. Então, durante três dias, entre a segunda-feira de Carnaval e a quarta de Cinzas, os armadores ofereciam ao povo uma grande festa. Bebida e comida à vontade. Até hoje, o prefeito de Dunkerque lança arengues para a multidão na abertura do Carnaval! Uma outra festa mais antiga, junina esta, criara a tradição das fantasias e dos bonecos gigantes. Tudo isso reunido mais a tradição das marchas militares do Exército de Napoleão deram um caldo bom demais, um danado de um Carnaval.
Todos os participantes têm a cara pintada, vestem casacos de pele (estamos em pleno inverno!), confeccionam com roupas antigas fantasiosas fantasias, usando boás de plumas coloridas, perucas em tons fosforescentes que contrastam com a paisagem cinza dessa zona bastante industrial e plana. Marinheiros de listras, homens vestidos de mulher, Napoleões distintos, chapéus tricórnios se ajeitam juntos atrás da banda de música, levando sombrinhas que lembram as nossas do Frevo. Trombones, trombetas e tambores militares tocam marchinhas lúbricas cuja letra todo mundo conhece.
O vocabulário é pontuado de palavras em flamengo, os nomes dos órgão sexuais se declinam em inumeráveis sinônimos. A brincadeira não é de pular, mas de se amassar coletivamente. Um empurra-empurra generalizado, como uma grande melê de Rugby, quando aqueles homens todos se amontoam para proteger ou agarrar a bola. Aqui no caso o empurra é horizontal, você esmaga quem está na sua frente e é esmagado por quem está atrás. Dá medo e felicidade ao mesmo tempo. A banda então toca os pífanos e a melê se desfaz, a marcha continua e o seu ego fica ali dissolvido na multidão.
Ou senão você entra em um bar minúsculo, onde a multidão acaba de penetrar. O Carnaval continua ali dentro, cervejas transbordam das canecas, o empurra continua e você não sabe mais quem você é, nem porque, nem quando. Se você não gostar de cerveja, pode experimentar o Diabolô Flamand, um álcool de zimbro misturado com limonada gasosa. Um delicioso perigo.
O que é bonito é que, apesar da alta taxa de alcoolemia no sangue, as pessoas se respeitam, brincam e riem juntas, tomam chuva e cantam juntas, numa festa coletiva que tem um fundo melancólico. A pesca está por vir, e se não é a pesca, é a vida operária, metalurgia e sofrimento que se redimem ali, na folia geral. Muito parecido com o nosso Carnaval quando ele é autêntico. Quando o hino ao corsário Jean Bart ressoa, os carnavalescos se ajoelham e prestam homenagem ao herói dos mares, que representa a coragem anônima de seus ancestrais.
À noite, os habitantes da cidade abrem suas casas para os amigos. E a festa continua na esfera privada, com comes e bebes, bebes e comes, sopa de cebola, salada de batata com arengue bien Sûr, patês, tortas de maçã, e mais música e dança num ambiente muito acolhedor. A alegria é geral, ampla e irrestrita.
O Carnaval que se respeita é aquele em que cada um pode mergulhar no coletivo e se dissolver na ideia de que estamos todos no mesmo barco. Aquele que um dia pode não voltar.
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