Há uma cidade que visito sempre em meus sonhos. Ela é cheia de água, cortada por canais em vez de ruas, e no final de uma avenida larga que desemboca em uma espécie de lagoa, vejo sempre uma roda gigante e reconheço então que estou ali outra vez. Ah, é aquela cidade, penso de dentro do meu sono. Cá estou eu de novo. Chegando aqui em Veneza nesta semana, tive uma sensação perturbadora. O sonho tinha virado realidade, ou a realidade tornara-se sonho?
Sentada no vaporetto, deslizando pelo Canal Grande, foi que me senti assim, catapultada para a minha geografia onírica. Absorta em um longo travelling diante das fachadas ilustres de palácios antigos e descascados, coloridos por um sol refulgente que a água rebatia, não sabia mais se estava dormindo ou se acordara. A cidade dos meus sonhos é feita de ruelas em que se alinham o ocre e o amarelo, separadas por canais verde escuro, interligadas por pontes, ou não. É que às vezes a gente chega numa rua sem saída, ou melhor, a única saída é um mergulho no canal. Impasses. Um labirinto desses, parecido com a vida, cujos caminhos nem sempre sabemos onde vão dar. E de repente, uma abertura, uma praça líquida sob um pórtico se abre, trazendo um novo horizonte e uma torre de igreja, pois delas a cidade está cheia, flechas apontando para o céu.
Percorro museus e igrejas, encontros marcados com a pintura que aprendi na minha infância graças a meu saudoso pai. Foi ele quem me iniciou e me apoiava na coleção de contra-capas da enciclopédia Universo, que saía toda semana em fascículos, trazendo uma reprodução de um quadro famoso e uma sucinta explicação da vida e obra de cada pintor. Eu adorava estudar cada um destes quadros em companhia de papai. Em Veneza, reencontrei alguns deles: Tintoretto, Veronese, Tiepolo, imensos pintores do século XVI e XVII que decoraram igrejas, o Palácio dos Duques e palácios de outros príncipes reais.
Quantas imagens se sobrepõem, escultura, pintura, arquitetura e a divina luz do sol. Quando se deita o astro, o céu tinge-se de azul cobalto, cor que o canal reflete de imediato, as luzes elétricas se acendem e pintam o céu de estrelas. No lusco-fusco, viramos todos pintores e estetas graças aos nossos olhos que escolhem enquadramentos, aqui ou ali, para onde quer que se vire, a beleza surgirá.
Veneza.
Este nome já basta. Monteverdi e Vivaldi nasceram aqui. Escritores famosos com Balzac, Proust, Somerset Maugham e sei lá mais quem adoravam sentar-se no café Florian da Praça San Marco para escrever ou conversar. Pudera, acolhedor e todo de ouro. Peggy Guggenheim, a jovem herdeira milionária e musa dos surrealistas, é convidada para apresentar sua coleção de arte moderna na Bienal de 1948, e termina por comprar um palácio para instalar ali seus quadros de artistas que ela apóia. Hoje, este lindíssimo museu na beira do Canal Grande é um dos must de uma visita à cidade.
Em Veneza, respira-se arte, come-se arte, deseja-se ardentemente participar da eterna criação da qual todos já fazemos parte (mas às vezes esquecemos). Eu, você, a condutora loura do vaporetto com quem conversei e que sonha em visitar Paris. Convidei-a a realizar seu sonho, posso ajudá-la. Ela me diz que depois de 20 anos de navegação no Canal, ela ainda descobre novos detalhes a cada passagem. Eu, você, ou o dono do restaurante de pasta fast-food, que por eu ter reclamado dos raviolis estarem frios, decidiu pessoalmente esquentá-los e ainda me propôs dois molhos diferentes para eu experimentar. Gentileza também é arte. Ou a senhora velhinha que de noite andando numa rua quase cai no canal, e depois se ri, dizendo que é melhor ela olhar por onde anda. Chi va sano va piano e va lontano. Ou aquela outra signora que cumprimentei pela janela, com um aceno de mão e um sorriso amoroso, de mulher para mulher que sabe envelhecer livre. Ou aquele senhor que me vendo desesperada procurar os bilhetes comprados para o vapporetto me disse que com calma eu ia encontrá-los. Sua voz era doce e me apaziguou.
Madeira, ouro, mármore, rosa, branco, alabastro, mosaicos de influência bizantina, perucas, máscaras, tecidos adamascados, Commedia del Arte, Ópera, teatro, peixe fresco, vinho tinto, vinho doce, spritz. Tudo é muito, tudo é lindo, tudo pode, nunca é demais. Esta é a lição de Veneza.
Só falta agora eu encontrar a roda gigante, para ter certeza de que a fronteira entre o sonho e a realidade não existe : nada se perde, tudo se transforma. A vida é mais.
*Adriana Komives, brasileira de origem húngara, 52 anos, 32 em Paris onde estudou cinema e exerce desde então as profissões de montadora e roteirista. Consultora em montagem de documentários nos Ateliers Varan, la Femis, DocNomads, ensina o ofício de montagem no Institut National de l’Audiovisuel e roda o mundo trabalhando em oficinas de realização documentária.
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