Existe no centro de São Paulo um campo de refugiados chamado Cracolândia. Por ali perambulam centenas de pessoas, crianças e jovens, adultos moradores de rua, andarilhos apressados, outros nem tanto, traficantes, policiais…
O nome desse lugar faz referência à pedrinha que, fumada, arremessa o sujeito aos tempos da caverna do Neandertal. Abduzir-se à idade da pedra parece ser um exílio químico eficaz que torna suportável o insuportável.
A Cracolândia não é o fim da linha porque não é uma linha. É um novelo, um emaranhado. Ali o exilado tem lugar, tem visibilidade, sai na mídia, entra na agenda dos políticos e governos.
A loucura da droga acompanha frequentemente situações extremas que muitas pessoas são forçadas a viver – os foragidos da fome e da sede, da pobreza extrema, das catástrofes naturais, os soldados no “front”, ou ainda aqueles que pedem asilo depois de ameaçados e expulsos por governos tiranos ou guerras civis: A ruptura com a terra, com a origem, com a família e comunidade, com a “mátria”.
Há 19 anos, quando iniciamos nossas atividades no Projeto Quixote, era comum, em várias cidades, a internação compulsória das crianças na rua que usavam drogas. Entidades assistencialistas que distribuíam alimentos e roupas acabavam mantendo o ciclo de permanência na rua. O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda era recém-nascido.
O Projeto, em parceria com a Prefeitura de São Paulo, e uma rede de serviços públicos governamentais e não governamentais, busca oferecer a esses jovens o acesso a um outro circuito, alternativo à rua, que inclui arte, saúde, educação e cultura.
Na linha de frente dessa tarefa estão os Educadores Terapêuticos (ETs), munidos com o que chamamos de mochilas lúdicas. Vão a campo e exploram esse território oferecendo corpo aos exilados. Disponibilidade de escuta, de testemunho, de curiosidade. Uma bola, um jogo, um tamborzinho, um gravador, um lápis com um papel. A presença contínua dos educadores nas ruas lhes confere legitimidade afetiva e tornam-se bons conselheiros.
Um dia, Bruna chama a dupla de educadores até seu cobertor para lhes presentear com um par de brincos e propor uma brincadeira de detetive. O maior presente não eram os brincos, mas as pistas do jogo: região de onde ela veio e o nome da escola onde estudou. Poucas pistas e muita vontade de escrever uma história. “Quero ver, tio, se você é bom detetive mesmo. Quero ver se descobre onde mora a minha mãe”.
Frente ao desejo onipotente de tirar cada um daqueles meninos imediatamente da rua, os educadores se lembram da complexidade do fenômeno. Apoiam-se uns nos outros e guardam para si seus ímpetos salvacionistas. E tudo o que fazem é marcar um encontro para o dia seguinte.
Miguel de Cervantes inseminou no ventre da humanidade um alerta:
Querer salvar o mundo é sublime, julgar-se o salvador é ridículo.
Vai-se tecendo assim a história de um vínculo, um vínculo de confiança. Os ETs são uma espécie de ego auxiliar, uma ponte entre a ficção, o delírio e a realidade.
Sancho Pança é um ET para Dom Quixote.
A ideia central do trabalho é o de um rematriamento possível. Esse longo e tortuoso caminho de retorno à mátria, tecendo junto com a criança sua narrativa, sua história, seu presente e os seus desejos futuros. E junto às famílias acompanhamos a (re)construção de uma rede de cuidados sociais, de saúde, educação, cultura.
Os jovens da terra do crack não são toxicômanos precoces, mas pessoas que buscam no exílio a afirmação de suas vidas.
De qualquer maneira, o que está em jogo é o reencontro tenso e intenso de alguém com sua mátria.
Poder transformar a própria história é uma declaração de amor próprio.
Matéria-prima da narrativa do sujeito como um ser autônomo, único, que tece sua vida com uma linha que não separa, aliena nem esquarteja, mas alinhava, define e protege.
*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote aurolescher@gmail.com
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