Caetano e Gil parecem ter dado suas respostas definitivas aos que lhes pediam para não cantarem em Israel. O segundo o fez em longa entrevista e o primeiro em carta a Roger Waters e quem mais possa interessar.
Ao ler esses documentos fui imediatamente transportado para a memória do genial quadro em que Chico Anysio e João Cláudio Moreno interpretavam a dupla Zelberto Zel e Caretano Zeloso.
Zelberto Zel arrastava o sotaque baiano em longas frases e palavras inventadas, amontoadas em discursos que restavam ao final incompreensíveis. Era a caricatura de uma retórica misteriosa pela qual se podia estar expressando tanto o gênio incompreendido quanto o idiota mais oco.
A réplica, ou o complemento, era então dada por um Caetano Zeloso igualmente inapreensível que invariavelmente concluía qualquer afirmação com a possibilidade de seu contrário: ou não…!
A entrevista de Gilberto Gil consistiu essencialmente no exercício de preencher uma página inteira de jornal para não dizer nada. A pérola? Gil diz estar indo cantar para um Israel palestino, causando um assombro mal contido no jornalista que o entrevistava.
Já a carta de Caetano está fundada na dúvida – ou não…! Ele diz que o problema da Palestina não lhe parece tão preto no branco como era aquele da África do Sul. Tenho certeza que foi um escorregão, mas ainda assim revelador. Talvez seja mesmo uma ausência de contraste na cor da pele que impede Caetano e outros de enxergar a injustiça na Palestina pelo que ela de fato é.
Como suporte para sua dúvida, Caetano evoca o fato de que Sartre e Simone de Beauvoir teriam morrido pró-Israel. Ainda que nada tivesse acontecido desde então, há uma aceitação inocente, dificilmente desculpável, da infalibilidade dos grandes heróis da Rive Gauche.
E a propósito desses mesmos heróis, Edward Said relata um seu encontro com Sartre e Beauvoir, a convite destes, na Paris de meados de 79, para discutirem em congresso a paz no Oriente Médio. O encontro aconteceu na casa de Michel Foucault, que não participaria dos debates. Simone de Beauvoir também teria ido embora antes da conversa começar para não mais voltar. Já Sartre, uma sombra de si mesmo, dependente de um séquito em que se destacavam os pró-israel, calado, teria restado incapaz, por uma ou outra razão, de ser fiel ao compromisso intelectual contra a injustiça.
A frustração de Said com seu herói agora descarnado e com a sua cegueira, decorrente de deterioração ou de influências circundantes, é enorme.
Uma frustração semelhante é a que expressa em relação a Isaiah Berlin. Said escreve sobre Berlin apontando para a agudez da sua inteligência, para a profundidade de seu olhar e para a amplitude de sua erudição, mas denuncia a contradição fundamental: Berlin era um liberal, um homem de justiça e compaixão, de moderação civilizada em tudo exceto onde Israel estava concernido.
Há algo de terrivelmente perverso nessa cegueira que acomete até mesmo grandes mentes e que as impede de ver a injustiça mais flagrante.
Mas a injustiça não deixa de ser porque Sartre já não podia vê-la. Ela apenas aumenta com a cegueira, e mais ainda quando a cegueira é de quem não quer ver.
Eu já disse não saber que estatura um dia tiveram Gilberto Gil e Caetano, mas hoje os percebo muito parecidos com as caricaturas que deles pintavam Chico Anysio e João Cláudio Moreno.
E caricaturas podem cantar onde quiserem. Com ingressos esgotados, faz questão de dizer Caetano.
Assista aqui ao quadro de Chico Anysio e João Cláudio Moreno
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