A “antroPOPhagia” de Beatriz Azevedo

A cantora Beatriz Azevedo. Foto: Divulgação
A cantora Beatriz Azevedo. Foto: Divulgação

Música, poesia, dramaturgia, literatura e antropologia… Tudo se mistura no universo artístico de Beatriz Azevedo. E tudo isso se reflete, de algum modo, em antroPOPhagia, quarto disco da cantora e compositora que tem lançamento esta semana no Sesc Pompeia. Gravado ao vivo em Nova York “por acaso” – ou seja, por iniciativa do técnico de som, que registrou o show sem avisar os músicos – e lançado agora pela Biscoito Fino, o disco tem direção musical de Cristóvão Bastos, assim como Alegria (2008). E se traz referências diretas ao modernismo de Oswald de Andrade, Raul Bopp e Pagu, do século 20, o trabalho mostra a vontade da cantora de atualizar velhas ideias e trazê-las aos novos tempos: “Minha proposta é seguir adiante, no século 21, cutucando estas contradições brasileiras e universais”, ressalta Beatriz, citando o “perspectivismo ameríndio” do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a vontade de quebrar clichês acerca do Brasil.

O novo álbum, gravado com a talentosa banda Bárbaros Tecnizados, traz parcerias da cantora com Vinicius Cantuária e com os jovens instrumentistas Angelo Ursini e Deni Domenico, além de músicas feitas em cima de poemas dos velhos antropófagos e versões para Insensatez (Tom e Vinicius) e What is This Thing Called Love (Cole Porter). Antenada com a produção das várias gerações da música brasileira, Beatriz convida para os shows (quinta e sexta, dias 17 e 18) os instrumentistas Bocato e Jaques Morelenbaum e os cantores Zélia Duncan e Gustavo Galo. “Meu trabalho, creio, faz parte da produção mais atual da música brasileira. É com este momento atual que eu mais me identifico na verdade, e onde é possível toda esta maluquice que meu trabalho abarca, sem limitações ou fronteiras muito rígidas de estilos musicais.”

Veja abaixo o teaser de divulgação do show e leia abaixo a entrevista.

Você é cantora e compositora, mas também atriz, poeta, estudou dramaturgia e fez mestrado em Literatura. Ouvindo o disco, parece que tudo isso influencia a sua música. Faz sentido? Quer dizer, esses campos todos se misturam na sua produção?
Sim, claro. A literatura, o teatro, o cinema, a dramaturgia, a música, a poesia, tudo isto é alimento para a criação. E no caso do projeto antroPOPhagia mais ainda, pois criamos um espetáculo para estrear no Lincoln Center em Nova York, já com o mote da Antropofagia. Então foi um mergulho grande, até nas imagens, na antropologia, na perspectiva ritual da antropofagia dos Tupinambá. Tudo isso de alguma maneira está no show e no disco.

Esse é o seu quarto disco, e o primeiro ao vivo. Isso traz uma outra intensidade, outra sonoridade para o trabalho?
O maior barato deste disco é que ele foi um “ao vivo” totalmente vivo, no sentido de que ninguém no palco sabia que estava sendo gravado naquele instante! Eu já lancei três CDs antes, e eu tinha total consciência que estava no processo de gravação de um álbum. Agora, no antroPOPhagia foi tudo inesperado! A gente, a banda Bárbaros Tecnizados, achava que seria apenas um show no Lincoln Center e pronto. Nunca passou pela nossa cabeça gravar um disco ao vivo, e ainda mais em Nova York. Na Biscoito Fino, quando me perguntaram de quem era o projeto do disco, eu respondi: ‘do técnico de som!’ Foi dele a ideia, a iniciativa, e o senso genial de aproveitar o momento “ao vivo” de artistas brasileiros em Nova York. E ele não contou pra gente. Então tocamos com aquela garra e espontaneidade de quem está amarradão fazendo um show fora de casa. A sonoridade, a intensidade, o fluxo das músicas trazem muito deste vigor da viagem. Tem uma música no disco com o título de Gran Navegação… Foi bem isto. O disco tem a mesma aventura das navegações, as “descobertas” e as naus em pleno mar.

E é interessante que o disco, com este título, tenha sido gravado em Nova York. Como foi cantar e falar de antropofagia em solo norte-americano?
Eu também achei superinteressante esta obra de arte do acaso total! Fomos estrear antroPOPhagia justo em Nova York, de certo modo uma “capital cultural mundial”, uma babel contemporânea. O meu prazer secreto, estando em solo norte-americano, era lembrar que o Oswald de Andrade sempre dizia: “Não somos Brasileiros, somos Americanos”, no sentido transnacional da cultura Ameríndia. E ele sempre defendeu a “poesia de exportação” para contra-atacar séculos de colonialismo no Brasil. Nossa alegria foi encarnar a poesia pau-brasil, de exportação, do século 21, em pleno palco do Lincoln Center em Nova York, invertendo o processo colonizador e todos os clichês acerca do País.  

Três canções do disco foram feitas sobre poemas de Oswald de Andrade e uma sobre poema de Raul Bopp. A antropofagia dos modernistas brasileiros segue viva em pleno século 21 ou ela ganha novos tons?
A antropofagia do Oswald de Andrade, do Raul Bopp e da Pagu é um alimento, mas minha proposta com a antroPOPhagia é seguir adiante, no século 21, cutucando estas contradições brasileiras e universais.  Para mim é muito mais uma perspectiva, no sentido do “perspectivismo ameríndio” do Eduardo Viveiros de Castro, a percepção de que existe um “outro” modo de ver a vida, uma outra concepção de mundo que precisa ainda aflorar e contracenar conosco em todos os sentidos.

Capa do disco. Foto: Divulgação
.

A sua antropofagia, no entanto, vem com POP em caixa alta, que até dá um tom mais contemporâneo. Qual a ideia por trás desta nova escrita?
Na verdade começou com uma brincadeira meio “língua do p”, eu adoro falar “f” com som de “ph”, tipo “pharmácia”.  Daí percebi que antropophagia era uma palavra muito mais saborosa.  E escrevendo, saquei que havia um POP no meio da palavra!  Quando me dei conta, pareceu uma mensagem escondida, um código, um bilhete numa garrafa de pirata jogada no meio do oceano. Na época do Oswald, a grafia era mesmo com ph. Ou seja, sempre existiu este POP na palavra original… Talvez ninguém tenha enxergado antes.  O que hoje muita gente percebe como o “toque contemporâneo”, o POP que eu destaquei no meio da palavra, na verdade, é a coisa mais arcaica ali.

Aliás, apesar de soar um disco bastante brasileiro, ele mostra que você tem sempre ouvidos muito abertos para as influências de todos os cantos e de variados gêneros, sem preconceitos e sem se fechar em um rótulo. Essa é um pouco a busca antropofágica de sua música?
Fico contente que você pense assim, que tenha percebido isto no meu trabalho. Sim, eu não gosto de me enquadrar em nenhum rótulo, não sou garrafa nem vidro de remédio! A liberdade e a metamorfose são fundamentais para o fluxo de criação.  

Assim como em Alegria, a direção musical é de Cristóvão Bastos, nome já consagrado de nossa música. Mas entre os instrumentistas a banda atual é mais jovem, e alguns dos integrantes inclusive são parceiros de novas composições. Como é esse trabalho de unir gerações? Você procura estar sintonizada com a produção mais atual da música brasileira?
Você tocou num ponto importante. Eu sempre gostei de somar perspectivas distintas, misturando gerações de artistas, de linguagens, de formação, de cidades, de países, de tudo. O Cristóvão tem muita experiência, mas nem por isso é o mais “tradicional”; os mais jovens têm muito frescor, mas nem por isso são sempre os mais “inovadores”; tudo isso se amalgama, e trabalhar com todos eles juntos e misturados é ótimo! Já no teatro eu tinha este costume, de montar peças com velhos, crianças, jovens, todo mundo junto, uma coisa meio do circo, sabe? O Leão dorme ao lado do Anão, que namora a contorcionista que na verdade é apaixonada pelo palhaço, que talvez deseje o domador… A gente montou a banda Bárbaros Tecnizados dentro do Teatro Oficina. O Zé Celso me convidou para dar umas oficinas e montar um espetáculo. Daí eu chamei o Pedro Gongom, da Trupe Chá de Boldo, que chamou o Felipe Botelho. Eu chamei o Angelo Ursini e o Deni Domenico.  Assim nasceu a banda, e no disco tem parcerias minhas com o Angelo e o Deni e um arranjo que foi criado junto com o Gongom.  Depois eu fiz parcerias no Rio com o Vinicius Cantuária, que é de outra geração e de outra referência cultural. Ele é da Amazônia e mora em Nova York. E entraram na banda um baterista de Pernambuco, um guitarrista da Bahia, um baixista carioca. Enfim, meu circo está montado! Na verdade, meu trabalho, creio, faz parte da produção mais atual da música brasileira, é com este momento atual que eu mais me identifico na verdade, e onde é possível toda esta maluquice que meu trabalho abarca, sem limitações ou fronteiras muito rígidas de estilos musicais.

 


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.