“Aquarius”, segundo Kleber Mendonça Filho e Sonia Braga

Sonia Braga e Kleber Mendonça Filho, no Festival de Cannes. Foto: Reprodução da página oficial do filme Aquarius no Facebook
Sonia Braga e Kleber Mendonça Filho, no Festival de Cannes. Foto: Reprodução / Facebook

Aquarius
, segundo longa-metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, que estreia nos cinemas do País no dia 1° de setembro, é desses filmes que desconcertam o público logo na primeira 
cena. Em tomadas aéreas do Recife da primeira metade do século 20, imagens em preto e branco da orla da praia de Boa Viagem fundem-se à música Hoje, de Taiguara. Compositor mais censurado durante o regime militar, ele inicia a canção com a frase “Hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo”.

Clara (Sonia Braga), protagonista de Aquarius, uma jornalista aposentada e escritora, é alguém que parece ter inspirado o verso de Taiguara. Apaixonada por sua memória afetiva e altiva pela trajetória que construiu para si, ela enfrenta ao longo das 2h20 do filme um embate extenuante com a construtora Bonfim, que pretende demolir o Edifício Aquarius, onde ela reside, uma charmosa construção de três andares, construída à beira-mar na década de 1940, para ali erguer um arranha-céu e, com isso, faturar milhões. Única moradora a negar a venda de seu apartamento, Clara trava uma luta solitária contra a especulação imobiliária e transforma-se em uma espécie de heroína, plena de simbolismo de resistência em dias de concessões.

Um dos 20 selecionados para concorrer à Palma de Ouro do Festival de Cannes, o filme também foi destaque na mostra francesa pelo protesto contra o governo interino de Michel Temer, realizado, em maio último, por Kleber, Sonia e parte do elenco e da equipe do longa. O ato repercutiu em veículos de imprensa de todo o mundo. No Brasil, gerou reações de empatia, entre aqueles que convergem com a opinião de que um golpe de estado está em curso no País, mas também provocou fúria entre os que concordam com a deposição de Dilma Rousseff. Reação que deu início, inclusive, a uma campanha virtual de boicote ao filme, por meio da hashtag #BoicoteAquarius. Ironicamente, graças a sua força incontestável, Aquarius já foi vendido para mais de 50 países.

No número 3 da revista CULTURA!Brasileiros, que chega às bancas na próxima semana, Sonia, que é capa da edição, e Mendonça Filho estão presentes em duas longas entrevistas que, somadas à resenha do filme, totalizam 20 páginas. As reportagens também incluem fotos exclusivas do cineasta feitas no Recife, por Fred Jordão, e da atriz, feitas em Nova York, por Alcir N. da Silva.   

A seguir, selecionamos trechos inéditos, não publicados na edição, onde Mendonça Filho e Sonia abordam a situação política do País, a relação entre eles durante as filmagens e o pedido de deposição do diretor, sob a acusação de aparelhamento, do cargo de coordenador do núcleo de cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, instituição ligada ao governo federal.

Kleber Mendonça Filho
“A democracia no Brasil tem sérios problemas. Vivemos em um País onde, por exemplo, existe um massacre de jovens negros e essa realidade é tratada com enorme naturalidade, com a apatia do ‘é assim mesmo’. Isso demonstra que há problemas muito sérios a serem resolvidos. Escolher líderes através do voto direto é uma grande conquista para o País. Perder isso é muito sério, no estágio de desenvolvimento que estávamos da história do Brasil.”

“O embate de Clara com a construtora talvez venha da percepção da importância da construção da memória e do quanto ela é resultado de tudo que vivenciou. Algo que vai na contramão dos interesses dos seus opositores. Algo que está permeado em sua trajetória.”

“Entrei na Fundação Joaquim Nabuco no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Coloquei meu cargo à disposição na virada FHC/Lula, e a nova direção da fundação questionou se eu estava ficando louco. Na reeleição de Lula e na virada para o governo Dilma fiz a mesma coisa, mas estou lá até hoje e agora surge essa acusação completamente estúpida de aparelhamento, que não faz absolutamente nenhum sentido. Falar sobre o meu trabalho na fundação é sempre mais eficaz quando você conversa com as pessoas que usufruíram de meus anos na coordenação de cinema. Aliás, achei fantástico quando aquela criatura da revista Veja, o Reinaldo Azevedo, divulgou meu salário, porque ficou muito claro o nível de comprometimento que eu tenho para fazer esse trabalho. Faço isso há 18 anos e realmente nunca deixei de sentir amor e entusiasmo por esse trabalho. A ideia de programar filmes é fantástica. Veja o que aconteceu ontem à noite, por exemplo, Anna Muylaert veio aqui para apresentar Mãe Só Há Uma e participar de um debate. Depois do filme, a sala ficou lotada por uma hora e meia e houve muita interação do público com Anna e comigo, como mediador. Com o crescimento de público tivemos, inclusive, de abrir uma segunda sala, com equipamentos de ponta. É um trabalho que eu amo e acho que, sim, tem sido muito importante, porque gera um dínamo, gera energia. Se eu saísse hoje da fundação estaria muito feliz porque tive todos os prazeres possíveis nesses 18 anos.”

“Não tenho sofrido nenhuma ingerência em meu trabalho na fundação, mas é inegável que há hoje uma energia ruim, de elementos externos, algo que nunca senti nesses 18 anos. Existe hoje uma patrulha, que manda e-mails para o fale conosco, que questiona os filmes selecionados e insiste nessa história de aparelhamento. Uma coisa sinistra, meio a Romênia do Nicolae Ceaușescu. É um momento muito estranho esse pelo qual estamos passando.”

Sonia Braga
“Nossa democracia é tão jovem, deveria ser tratada com respeito e muito cuidado. Se as pessoas não entendem a importância disso, eu também não compreendo o que está acontecendo com elas. E o que mais me assusta é que, nas vitórias recentes do Brasil, nós sempre caminhamos juntos. Tivemos união nas Diretas Já! Eu estava lá, lutando com todos, não como militante, mas como uma cidadã que queria ver a democracia voltar a ser uma realidade no Brasil.”

“Alguém que tem o respeito que Kleber tem no mundo todo não ser reconhecido em seu próprio país não faz o menor sentido. Quando ele voltou de Cannes, depois de toda a carreira de sucesso que já havia feito com O Som ao Redor em festivais internacionais, deveria ser recebido pela imprensa do nosso País logo que chegou no aeroporto, como um time de futebol que é recebido com festa, porque é campeão. Defendo Kleber incondicionalmente e tenho amor a esse assunto.”

“Acho que tive a sorte de perceber uma coisa fundamental na minha vida, que é a visão de justiça que eu sempre tive. Tenho muito tempo livre, não faço muita ginástica em academia, mas gosto muito de caminhar. E sempre que encontro um mendigo, paro um instante para com ele conversar. Para mim, é um ato de entender o outro e pensar que na vida daquela pessoa talvez faça muita falta o simples gesto de alguém se aproximar para conversar. Dias atrás, por exemplo, bati um papo com um cara, muito inteligente, e veja só o que ele me disse: ‘De onde estou, pode não parecer, mas tenho uma perspectiva incrível da vida, porque vejo de baixo as pessoas me ignorando’. Essa me pareceu uma imagem incrível, porque a visão dele é a perspectiva de alguém que sabe que não é visto pelas outras pessoas. Alguém sábio, que certamente não pediu para estar ali. Ele é como as pessoas invisíveis do Brasil. Ninguém acorda no Nordeste e diz: ‘Mãe, hoje levantei da cama decidida a ser prostituta’. Quem é que acorda no Brasil, nos Estados Unidos, ou em qualquer canto do mundo e diz: ‘Sabe o que resolvi? Vou ser mendigo’?!”

VEJA O TRAILER DE AQUARIUS


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