Arquitetura da leitura

Passado e futuro confluem no projeto arquitetônico atual: um disco solar inclinado simboliza o nascer do sol
Passado e futuro confluem no projeto arquitetônico atual: um disco solar inclinado simboliza o nascer do sol

“Dentro do Museu (…) a vida não era nada tranquila. ‘Na populosa terra do Egito’, escarnecia um poeta satírico da época, ‘são criados uns garatujadores livrescos que se bicam eternamente na gaiola das Musas’. Timão, o filósofo cético a que se devem tais palavras, sabia que em Alexandria – diz ele vagamente ‘no Egito’ – encontrava-se o fabuloso Museu: chama-o de ‘gaiola das Musas’, referindo-se justamente àquela aparência de pássaros raros, distantes, preciosos, de seus moradores” (Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pág. 39).

Em 23 de abril de 2002 era inaugurada, sob os auspícios da Unesco, a nova Biblioteca de Alexandria. Ao lançar as bases de um centro destinado a abrigar e preservar a memória das civilizações do mundo, aquela instituição, erguida com imponência às margens do Mediterrâneo, buscava recuperar seu vínculo com um passado brilhante, quando “pássaros raros, distantes, preciosos” fizeram da “populosa terra do Egito” sua morada.

Passado e futuro confluem no projeto arquitetônico atual: um disco solar inclinado simboliza o nascer do sol. Na mitologia egípcia a imagem alude à emergência do farol das ciências e do saber. O vínculo com o presente e com o futuro se inscreve na fachada principal do edifício: ali se vislumbra um computador, ou apenas o seu espectro, multiplicando-se no espelho d’água. A parede colossal de granito sobre a qual foram gravadas letras de 120 alfabetos lembra o caráter cosmopolita, senão universal, que animava o antigo templo.

Os cataclismos que atingiram a bi­bli­oteca, na antiguidade tardia, reduziram seus traços físicos a imagens fugidias tiradas da literatura. Sabemos hoje que a biblioteca não constituía um edifício independente, pois os livros eram depositados nas bibliothékai, ou estantes, na acepção original grega. Donde a confusão metonímica que animou durante séculos a imaginação das gentes na busca de um palácio dos livros.

Na ausência de uma imagem que tenha fixado o modelo exato daquele edifício que o homem destruiu, toda biblioteca se converteu em uma releitura do museu alexandrino. Destarte, sendo a biblioteca uma construção social, pode-se ler a sua arquitetura pela chave dos horizontes de expectativas do leitor contemporâneo.

Nesse ponto, é curioso observar que os arquitetos da nova Alexandria não se deixaram seduzir por uma estética passadista. Eles fizeram coro com as tendências contemporâneas que dominam a paisagem intelectual das cidades, como que denunciando as múltiplas revoluções pelas quais as mídias passaram, bastando lembrar que a escrita se fixou como o registro por excelência das formas de pensamento (em detrimento do oral). E os antigos volumes deram lugar aos modernos códices. Tal perspectiva gerou a acumulação de mais de dois mil anos de escrita, entre manuscritos e impressos, o que sem dúvida repercutiu sobre o uso dos espaços consagrados não exatamente às tertúlias, mas à leitura. Não mais o museum, mas a sala de leitura isolada, apartada das bibliothékai. Diante de tanto aço, vidro e concreto, cabe perguntar: teriam a solidão do leitor e as novas tecnologias inspirado essas construções tão frias?

*Professora da USP e autora de, entre outros, O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista, Prêmio Jabuti, 2012. Para ler mais: bibliomania-divercidades.blogspot.com.br


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