Em entrevista concedida à Brasileiros em fevereiro de 2011, o maestro Julio Medaglia defendeu argumentos difíceis de se contestar, que expuseram a falência das estratégias mercadológicas adotadas pela indústria fonográfica do País. A íntegra da conversa pode ser conferida aqui, mas alguns excertos caem como luva para fazermos uma justa análise do significado e da importância do álbum reverenciado hoje em Quintessência. Vejamos, pois, três aspas ferinas do maestro Julio:
“A indústria fonográfica baixou o nível de tal forma, que chegamos a um grande estado de indigência. E ela ainda tem a cara de pau de eleger seus bodes expiatórios para justificar a crise! É o rapazinho da esquina que vende o disco pirata ou a internet. Como se a merda de música que eles produzem e querem vender não tivesse nada a ver com essa crise.”
“A indústria cultural não está sabendo manipular a sensibilidade e a inteligência musical do brasileiro. A música saiu da mão dos criadores e passou para a mão dos produtores. As grandes gravadoras que ainda existem não apostam mais em diretores artísticos. Gostam mesmo é dos diretores de marketing.”
“Os meios de comunicação desaprenderam a lidar com a música. Havia uma íntima relação entre a produção e o consumo. Um pingue-pongue que ia de um lado para outro, com muita facilidade. Em função do consumo e de sua própria repercussão, o processo evoluía naturalmente.”
Complementares, as três argumentações suscitam uma amarga lucidez. A primeira tese do maestro é, no mínimo, inconteste: basta perder (literalmente) alguns minutos e conferir o estado de indigência da música popular que invade as TV’s e rádios do Brasil. Já a segunda teoria chama atenção para um fator que dificilmente se esgotará: a sensibilidade musical inata do brasileiro. Intimamente ligado a esse segundo aspecto o terceiro argumento de Medaglia – a relação entre produção e consumo – pode ser exemplificada com a qualidade regular de nossa música popular entre as décadas de 1960 e 1970, critério presente até mesmo nas trilhas sonoras de novelas. O fato de um cantor (a) ou compositor (a) ambicionar êxito comercial nunca significou, em contrapartida, abrir mão de sua qualidade artística e de seus valores estéticos.
Esticando a discussão, para ouvintes mais conservadores, afeitos ao fato de que a música detém o poder de elevar a natureza humana, mas que essa força somente é atingível por meio de obras marcadas pela independência autoral, o álbum reverenciado hoje em Quintessência pode, em princípio, soar como uma escolha equivocada deste colunista. Afinal, trata-se do fruto de uma banda criada sob encomenda que, regida por um contrato, existiu por dois anos unicamente para servir de “trilha sonora” para uma série de desfiles de moda da Rhodia.
Corria o ano de 1968, quando o pianista e organista Cido Bianchi (ex-Jongo Trio e Milton Banana Trio) foi convidado por Livio Rangan, diretor de eventos da Rhodia, para criar um combo instrumental. O executivo ofereceu a Bianchi um contrato inicial de um ano e antecipou o pagamento de três meses de estúdio. Bianchi tocava regularmente com um grupo de amigos que, imediatamente, aderiram ao combo e formaram com ele um quinteto. Os quatro parceiros musicias eram: João Carlos Pegoraro (vibrafone), Carlos Alberto “Cazé” Alcântara (sax tenor e flauta), Nilson Matta (contrabaixo) e Douglas de Oliveira (bateria). Logo, o grupo aderiu o nome Brazilian Octopus e fechou o octeto com a chegada de outros três músicos excepcionais: Hermeto Pascoal (ex-Sambrasa Trio, ex-Quarteto Novo), o guitarrista e violonista Olmir “Alemão” Stocker e o jovem guitar-hero Lanny Gordin. Desde a adolescência de Lanny, ele e Hermeto eram parceiros musicais dos mais regulares no palco da boate Stardust, de propriedade do pai do guitarrista, que despontava como coringa dos tropicalistas.
Em julho de 1968, em uma breve passagem por São Paulo, o saxofonista japonês Sadao Watanabe, apaixonado por Bossa Nova, se reuniu com o grupo para algumas sessões de estúdio. O encontro rendeu o registro de 11 temas instrumentais, entre eles a releitura de clássicos como Bim-Bom (João Gilberto), Barquinho Diferente (Sergio Augusto) e Muito a Vontade (João Donato). Lançado no Japão pelo selo Denon Records, com o título Sadao Meets Brazilian Friends, o álbum que resultou desse encontro despretensioso segue inédito por aqui, mas acabou se tornando o quinto da carreira de Watanabe.
A primeira grande missão dos músicos do Brazilian Octopus para a Rhodia foi integrar o elenco e fazer a trilha sonora de um ambicioso espetáculo no qual, pasmem, se apresentaram caracterizados de bichos e tocaram dentro de uma jaula. Rangan idealizou o evento e deu a ele o nome Momento 68, misto de show e desfile, com textos de Millor Fernandes e direção musical do maestro Rogério Duprat, que contou também com a presença do dançarino Lennie Dale, os atores Walmor Chagas e Raul Cortez, além dos cantores Caetano Veloso, Gilberto Gil e Eliana Pitman.
Feliz com sua cria e chegando ao cúmulo de acreditar que transformaria Cido e o BO em um novo Sergio Mendes & Brazil 66, Rangan partiu para o passo seguinte: no início de 1969 começou a articular a gravação de um primeiro disco do octeto pelo selo Fermata. A seleção do repertório foi delegada a Alemão, talvez o mais experiente do grupo, que acabou entrando em pequenas discussões com Cido. Alemão defendia um repertório de acento popular e chegou até a oferecer País Tropical, recém-composta por Jorge Ben, mas Cido ignorou esta e outras dicas, pois queria fazer um disco requintado.
Quando, enfim, chegaram a um consenso, um belo mix de temas instrumentais e versões de canções resultou das discussões. O álbum homônimo reuniu 12 faixas e teve produção do pianista e compositor Mario Albanese e do radialista, crítico musical e cantor Fausto Canova. Entre os temas: duas parcerias de Albanese e Ciro Pereira (Gamboa e Gosto de Ser Como Sou); temas de autoria dos integrantes do BO, Rhodosando e Chayê (Hermeto), Canção Latina (Alemão e Vitor Martins) e O Passáro (Lanny); releituras, Casa Forte (Edu Lobo), Summer Hill (Carlinhos Lyra e Vinicius) e Canção de Fim de Tarde (Walter Santos e Thereza Souza); o tema principal do desfile, Momento B/8, composto pelo BO em parceria com o maestro Rogério Duprat; e duas “ingerências” da Rhodia: os temas As Borboletas (dos franceses Andre Popp e Pierre Cour) e Pavane (do compositor francês Gabriel Fauré).
Escrito por Armando Blundi Bastos, o texto da contracapa do álbum é preciso – e ao mesmo tempo bem equivocado – em definir o BO: “Pelo som característico, pelas figurações rítmicas, pelos naipes, pelos desenhos melódicos incomuns, emoldurados por uma estruturação harmônica de soluções inteligentes, Brazilian Octopus marca, com esse LP, a presença de um autêntico conjunto, de carreira vitoriosa, garantia antecipada de novos e primorosos lançamentos”.
O Acerto de Blundi vem do empenho em definir a sonoridade do octeto, que às vezes remete ao easy-listening italiano de Piero Piccioni e Franco Micalizzi, mas que compõe paisagens sonoras personalíssimas, de forte impacto. O equívoco, lógico, veio da falta de vocação do poeta para o exercício da “futurologia”: depois de encerrar o contrato com a Rhodia e tomar um tremendo calote da Fermata, que até chegou a insistir no convite de um segundo álbum, o Brazilian Octopus chegou a um precoce fim.
História efêmera que teve início com um propósito estritamente comercial, mas que resultou em música de enorme qualidade e atemporal. Atributos que reiteram a tese do maestro Julio Medaglia de que pode haver, sim, uma relação saudável entre mercado e consumo.
Ouça a íntegra de Brazilian Octopus
Boas audições e até a próxima Quintessência!
Em tempo:
O amigo Luiz Chagas, colunista da Brasileiros, publicou, em quatro capítulos, a história do Alemão. Vale conferir:
Parte 1, Parte 2, Parte 3 e Final
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