Cenas de um mundo apocalíptico

Coluna_EVARISTO
* Evaristo Martins de Azevedo é crítico de teatro;  conselheiro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte; e,  jurado do Prêmio Shell de Teatro

Discutir violência estrangeira no Brasil parece coisa pouca e, portanto, bobagem. Encenar por aqui um texto do jovem dramaturgo americano Adam Rapp não seria assim algo exatamente difícil ou muito impactante. Difícil seria trazer o espetáculo e reconstruí-lo aqui, traçando esses paralelos de modo que o púbico conseguisse sentir a tensão das angústias, da claustrofobia e dos horrores propostos.

Fazer isso de maneira convincente foi a tarefa da direção de Monique Gardenberg. Porém, o texto não é dos melhores para tanto. A pretensão do autor é a de falar de uma refugiada, até então uma pessoa comum, escondida no porão de um prédio abandonado por conta de alguma guerrilha não revelada, mas na qual faz alusões aos conflitos, opressões, ocupações e massacres atuais, militares e religiosos, ao redor do mundo – agravados, ainda, por alguma grande peste ou epidemia proposital criada pela guerra química.

Na trama, por trás da cena, uma inocente família é desalojada de seu lar por um grupo extremista, ou governo intolerante, que, insatisfeito com alguma coisa, torna aquela cidade inteira sitiada e impedida de qualquer ação, reação ou omissão, sob pena de perseguição e morte. Assim, a mulher está há meses em seu esconderijo, sem qualquer perspectiva de sair, exceto pela expectativa de ser resgatada por seu marido, um professor de literatura, por quem espera ansiosamente (como se fosse um Godot!), até saber, por uma das personagens que aparecem em seu refúgio, que ele foi cruelmente torturado até a morte.

Deborah Evelyn em “Hora Amarela”. Foto: André Wanderley
Deborah Evelyn em “Hora Amarela”. Foto: André Wanderley

Ainda assim, a peça quer falar de esperança, mesmo que permeada por uma terrível amargura. Fala da esperança de sair dali e, em conseguindo, o menos mal possível… Essa seria a “hora amarela”. Mas isso, ironicamente, só acontecerá quando os inimigos de quem foge estiverem rezando, o que significa que até eles, tão maus, dizem acreditar em um Deus bondoso.

Essas sensações de paradoxo e de enclausuramento não chegam a ser transmitidas com muito realismo ao público, a ponto de causar nele alguma inquietação, embora os cenários de Daniela Thomas possam de certa forma propiciar o desconforto aos personagens. No drama, o incômodo é pontuado pela iluminação bem sombria (Maneco Quinderé e pelas excelentes inserções da trilha sonora (Lourenço Rebetez e de Zé Godoy).

A protagonista é interpretada por Deborah Evelyn, em mais uma dobradinha com a diretora Monique Gardenberg. Esteve melhor em Baque, quando levou o Prêmio Shell de Melhor Atriz, em 2005. Em Hora Amarela, passeia por entre o pavor e a serenidade, mas demonstra convicção nesses extremos, especialmente quando quer dar um caráter mais afetuoso ou gentil à personagem que deve ter sido ser obrigada a se tornar tão arbitrária, violenta e injusta quanto seus agressores.

Talvez, a atuação de Deborah Evelyn se deva em razão de sua crença no texto, traduzido pela atriz Isabel Wilker, que também surge em cena no papel da garota drogada que entrega seu bebê, escondido numa mochila, em troca de abrigo por algum tempo, por um pouco de morfina e uma lata de pêssegos. Mas Isabel Wilker também parece exagerar ao querer incluir algum viés fetichista nas circunstâncias já suficientemente descontextualizadas da dramaturgia americana para o público brasileiro.

Também vão aparecendo em cena outras personagens, todas sempre suspeitas e inusitadas, interpretadas por Daniel Infantini, Daniele do Rosário, Michel Bercovitch e Darlan Cunha, contracenando com a protagonista e quem, talvez, traga alguma lembrança paralela aos verdadeiros (e tão próximos!) problemas da violência brasileira, mostrados nos filmes Cidade de Deus, Cidade dos Homens e Palace II, nos quais Darlan atuou antes. Ao mesmo tempo, é logo com ele que a chance de manter a esperança realmente aflora no espetáculo.

Nesse sentido, a desgraça, o medo e a estupidez humana, assim como as “horas amarelas” podem estar, e normalmente estão mesmo, em qualquer lugar do mundo, a qualquer tempo e não somente em um porão bem limitado de Nova York, no qual não se discute quem é o opressor. E justamente por revelar esse lampejo tão claramente é que essa versão brasileira pode valer a pena. 

Serviço – Hora Amarela
Até 29 de março, sextas às 20h, sábados, 19h, e domingos, 18h.
SESC Bom Retiro – Alameda Notham, 185, Campos Elíseos, centro de São Paulo
Ingressos: R$ 9 e R$ 15



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