Glauco, o cartunista, tinha o dom de fazer a gente rir com aspectos às vezes surreais e outros tantos ridículos da política brasileira. Por quase 25 anos, de 1986 – ano seguinte ao final da ditadura militar – a 2010, quando morreu tragicamente, ele criou piadas rápidas, inteligentes e com traços limpos para a Página 2 da Folha de S.Paulo. Dia sim, dia não, ora em dias seguidos, ora com intervalos maiores, Glauco fez uma legião de leitores encararem o noticiário de maneira hilária. Suas charges eram uma espécie de alívio da realidade.
Ele começou a ocupar esse espaço nobre do jornal na era Sarney, tempo propício em termos de notícias: hiperinflação, economia aos trancos com planos econômicos, congelamento de preços, ágio e a democracia recém-nascida. Depois, melhorou ainda mais com a eleição de Fernando Collor de Mello e as festas na Casa da Dinda. Mais adiante, com Itamar Franco no poder, o olhar cômico se manteve. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva também não escaparam. O primeiro foi recorrentemente retratado como homem vaidoso, e o segundo tem duas marcas fortes: a barba e a estrela. Naquela época, costumava-se dizer que o Brasil era o país da piada pronta – frase que virou jargão entre os colegas daquela redação de jornal.
Com a incrível capacidade de não perder a graça, parte desse material publicado pela Folha naqueles anos todos agora está reunida no livro Sapos, Cobras e Lagartos – A Charge Política de Glauco. De um acervo de mais três mil trabalhos, revistos ao longo de um ano e meio pelo editor Otavio Nazareth, foram selecionadas 235 charges para a publicação. “Tive a oportunidade de entrar em contato com a coleção do Glauco, que é de ouro, algo maravilhoso.”
O livro apresenta charges, alguns estudos e esboços em ordem cronológica, com datas e legendas, que ajudam a leitura histórica e demonstram a verve hilária do autor. Uma viagem por mais de 20 anos da história do País, por meio do pensamento sofisticado de Glauco e de sua graça. “A edição foi se impondo naturalmente assim”, afirma Otavio.
Como se sabe, a abordagem dos trabalhos do cartunista era enorme – Glauco retratou, além do cotidiano do Planalto, problemas conjugais, neuroses, solidão, drogas e violência. Criador de personagens como Dona Marta (a secretária ninfomaníaca), Zé do Apocalipse (o profeta brasileiro), Doy Jorge (o roqueiro malsucedido), Geraldinho (para o público infantil) e Geraldão (o solteirão que vive com a mãe), entre muitos outros, Glauco entrou para o jornalismo em 1970, no Diário da Manhã, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Só passou a publicar na Folha em 1984, na Ilustrada. Era um sujeito ativo, fez parte do elenco de redatores da TV Pirata e de alguns quadros do programa infantil TV Colosso, ambos da Globo, editou a revista Geraldão, pela Circo Editorial, entre 1987 e 1990, período em que foi colaborador das revistas Chiclete com Banana e Circo.
Levava a sério a seita do Daime, que mescla elementos do cristianismo e da umbanda, prometendo autoconhecimento. Tão a sério que abriu um espaço em sua casa para os cultos Mas, acima de tudo, Glauco era “um homem bom”, conforme escreve Beatriz Veniss, viúva do cartunista, no livro. Ela conclui: “Com imenso amor pela humanidade e uma visão sofisticada de um mundo melhor”. Glauco Villas Boas e seu filho Raoni foram assassinados em casa, no dia 12 de março de 2010. O autor do crime era conhecido da família, um jovem que frequentava os cultos religiosos. Assim, ele silenciou um dos mais admirados cartunistas do País.
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