Dois espetáculos em cartaz em São Paulo têm movimentado, com muita energia boa, públicos jovens que, talvez, nunca tenham visto uma peça antes… São espetáculos feitos pela galera, para as galeras, com suas temáticas, bem atuais, embora aparentemente bem distintos entre si. Mas só aparentemente.
Uma dessas peças é Peter em Fúria, da Cia. Pequeno Torneado de Teatro, coletivo teatral da periferia de São Paulo que acaba de completar dez anos e leva aos palcos uma adaptação de Peter Pan transportada para uma favela, na qual o personagem que dá título à história é um rapaz que também parece se recusar a crescer, mas já é o traficante maior que comanda uma favela da cidade… Todos os motes e personagens do clássico de J.M. Barrie estão presentes nesse morro contemporâneo tão violento, mas no qual os jovens ainda sonham como os da fábula do início do século passado.
Só que, na peça, a Terra do Nunca é nada mais nada menos do que a própria cidade, do asfalto, numa sociedade que busca mais justiça social. Estão ali sua Fada Sininho, os garotos perdidos e até o Capitão Gancho, cada um dos quais representados por personagens que, de fato, estão em todas as comunidades pobres disputadas por traficantes e milicianos.
Com dramaturgia, concepção e direção de Willian Costa Lima, o espetáculo tem lotado os teatros por onde circula. Em especial, tem sido muito esperado em diversos bairros das periferias de São Paulo, nas quais o Pequeno Torneado se apresentará por todo o segundo semestre de 2015. A companhia tem sua sede em Ribeirão Pires, cidade periférica da Grande São Paulo, e os próprios artistas em cena – e são mais de 20 no palco! – são ou foram moradores dessas comunidades carentes e bastante violentas, como a da própria peça, e, hoje, depois de se entregarem intensamente ao teatro se revelaram artistas extremamente talentosos ou, no mínimo, promissores.
É verdade que o espetáculo, para fazer comportar tanta gente e tantos personagens, acaba revelando alguns problemas, alguns excessos, mas ainda assim, todos eles passam despercebidos, tamanho o envolvimento e a identificação que transmitem para o público, principalmente quando interpretam as canções em cena. Muitos instrumentos e muita música de qualidade acompanham a trajetória de Peter na favela onde vivem os personagens. E chama a atenção também o respeito raro com que tratam vários temas delicados como, por exemplo, as religiões – tão presentes nessas favelas – e os ritos, todos, mais diversos. Atualmente, tem sido fácil a crítica e a perseguição aos fiéis de igrejas (muitas vezes por conta de seus falsos “líderes”!), numa absoluta inversão de preconceitos, mas em Peter em Fúria até mesmo essas questões são tratadas de forma respeitosa e com conhecimento de causa. Um respeito que só quem está nas regiões realmente mais pobres das cidades pode nutrir, ainda que, dentro do espetáculo, esse preconceito às avessas também seja corajoso e claramente discutido. Tudo apresentado de maneira sensível e acessível ao jovem público que vai ao teatro pela primeira vez e se identifica com os personagens e com a própria trama.
E o que se ouve daquele público na saída do espetáculo é que ele quer voltar e assistir de novo! O espetáculo deixa, sobretudo, nesse público, nesse novo público, a capacidade de reflexão social de uma maneira realmente intuitiva e, ao mesmo tempo, bonita.
Não à toa, o Pequeno Teatro do Torneado foi indicado ao Prêmio Shell, neste primeiro semestre de 2015, por sua inovação. Porque parece fácil fazer uma peça política engajada, mas feia e artisticamente ruim, que afasta o público do teatro para sempre. Por outro lado, também é fácil fazer espetáculo bonito e que não acrescenta muita coisa ao público… Difícil é fazer o que eles fazem: trabalho reflexivo, político e, ao mesmo tempo, lindo!
Outro espetáculo que tem causado o mesmo efeito, mas com uma temática aparentemente bem diferente, é M Mais de Perto, da Cia Dom Caixote. Nessa peça, a história que mostram em cena é a da vida, dos dramas e dos vícios de Amy Winehouse, cujos problemas (e fúria!) também poderiam projetados tais quais os de Peter.
Aqui, também se trata de uma companhia jovem contando a história de uma jovem também cheia de vícios, dirigida para o público jovem, que, em tese, teria fácil acesso ao teatro, mas que, por algum motivo, não se importa muito com isso. Mas essa é destinada ao público que curtiu e ainda curte a música de Amy Winehouse. Impressionante ver o estado de atenção durante o espetáculo e, ainda mais, a catarse do público ao final da peça! Ver tantos jovens saindo do teatro cantando Rehab e dançando, de modo tão eufórico, é outro espetáculo.
Em cena, junto com o grande elenco de mais de 15 artistas, está João Côrtes, o ator ruivo muito conhecido na televisão por suas propagandas de uma operadora de telefonia celular. Sensacional a performance do ator ao longo de todo o espetáculo: ele coloca uma energia contagiante em cena, interpreta dramaticamente muito bem, canta solo e com todo o grupo, dança muito bem, ironiza, brinca, joga e ainda faz rir (sem remeter ao personagem que faz na TV), sem desobedecer às marcações da direção de Luiz Felipe Petuxo. João Côrtes é uma grande revelação também no teatro, onde consegue, igualmente, revelar seu extraordinário carisma.
Mas assim como em Peter em Fúria, o espetáculo M Mais de Perto também se excede em alguns momentos e se torna, talvez, longo demais, contudo, visivelmente, porque o entusiasmo com o qual a peça deve ter sido concebida, provavelmente, impediu o grupo (e a direção!) de enxergar tais excessos e de enxugar algumas cenas eventualmente desnecessárias. De qualquer modo, o público desse teatro jovem, desacostumado a essas questões de dramaturgia, não percebe esses problemas e não chega a usar o celular durante a peça, exceto para tirar fotos e para filmar os momentos mais empolgantes!
Fascinante seria imaginar esse público, agora já apaixonado pelo teatro e ávido pela trágica história cheia de drogas e de anorexias da saudosa cantora inglesa, também ser alcançado pela música e pela brasilidade do público de Peter em Fúria. E vice-versa. Coexistindo. Porque os dramas dessas duas peças e de seus respectivos públicos não são muito diferentes…
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