É Ferro na Boneca!: o chute na porta dos Novos Baianos


novos baianos
“Entre o primeiro elepê e esse agora, quase dois anos, os Novos Baianos sumiram muitas vezes. Transaram todas, da TV, do Chacrinha, até essa última de filme (No Final do Juízo, um curta de Luiz Galvão) e dos novos shows e disco. O primeiro elepê gravado na Philips, não pintou como eles merecem. Tem muito angu por aí, disse-me-disse, e nem eles nem a Philips ficaram contentes. O elepê também não mostra a dupla de compositores que é Moraes e Galvão, nem o cantor que é Paulinho Boca de Cantor, nem a explosão de Baby Consuelo. Pra não falar de Pepeu, no Jorginho, em todo mundo.”

A aspa que abre o texto de hoje em Quintessência é de Hamilton Almeida Filho, o HAF, um dos mais brilhantes repórteres da geração que afrontou o poder dos militares e abriu trincheiras de resistência ao silêncio imposto pelo AI-5, em veículos da imprensa nanica que marcaram o início dos anos 1970, no Brasil, como O Pasquim, Flor do Mal, O Verbo, JA–Jornal de Amenidades, Presença, ex-, Ovelha Negra, O Sol, Grilo e Pato Macho.  

Publicado na revista Bondinho, o texto de HAF foi escrito em março de 1972. Criada em outubro de 1970, pela rede Pão de Açúcar de supermercados, a revista era distribuída gratuitamente para os clientes. Entre reportagens culturais e amenidades, trazia guias de serviços e roteiros. No início de 1972, a publicação foi transformada em um projeto independente, com 13 edições de sobrevida e conteúdo editorial dos mais instigantes, majoritariamente dedicado a retratar a nascente e efervescente contracultura brasileira (em 2008, a Azougue Editorial publicou o livro Entrevistas Bondinho, título imperdível ainda disponível em algumas livrarias).

A visita de HAF aos Novos Baianos – o encontro aconteceu na praia de Itapoá, em Santa Catarina – flagra a banda em momento transitório. Eles haviam acabado de lançar um compacto pela Philips, depois de deixar a RGE, que lançou, em 1970, É Ferro na Boneca!. Com quatro canções, Novos Baianos & Baby Consuelo No Final do Juízo traz a primeira versão do clássico Dê Um Rolê (ouça a íntegra do compacto). Foi às lojas quando o grupo maturava o repertório da obra-prima Acabou Chorare – lançado no final de 1972, pela Som Livre, e eleito, em 2010, pela revista Rolling Stone, o mais importante álbum da história da MPB. 

Absolutismos à parte (eu, por exemplo, adoro Acabou Chorare, mas sou bem mais afeito ao sucessor, Futebol Clube), HAF foi certeiro e justo ao dizer que o compacto e É Ferro na Boneca!, tema de hoje em Quintessência, estavam aquém do poder de fogo da trupe baiana – afinal, a exuberância musical dos baianos, nos discos posteriores, com a rapaziada do A Cor do Som, parceria que teve início em No Final do Juízo, confirma o prognóstico de HAF.

Mas é preciso não relegar ao álbum de estreia dos Novos Baianos um papel secundário na discografia do grupo. Pelo contrário, tanto na qualidade das letras do poeta Galvão, como na fórmula musical, acrescida da energia dos Leifs (grupo anterior de Pepeu Gomes e de seu irmão, o baterista Jorginho, que acompanha o quarteto; ouça Fobus in Totum), É Ferro na Boneca!, como o título sugere, é álbum ousado e radical. Especialmente se considerarmos seu ano de lançamento, 1970 – vale lembrar: muito popular na Bahia, a expressão que dá nome a estreia dos Novos Baianos foi cunhada pelo radialista e apresentador de TV França Teixeira.

fotos de Claudia Andujar para a reportagem de HAF, publicada em março de 1972, na revista Bondinho
fotos de Claudia Andujar para a reportagem de HAF, publicada em março de 1972, na revista Bondinho (em sentido horário: os baianos Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão e a carioca Baby Consuelo)

Com o lançamento do primeiro LP do trio, em 1968, os Mutantes reinaram absolutos na seara do rock antropofágico consolidado com o Tropicalismo. Cosmopolitas, performáticos e cerebrais, os roqueiros paulistanos tornaram-se ícones da juventude que protagonizou os primeiros dias de nossa contracultura, especialmente no eixo RJ-SP. Mas quem, dois anos mais tarde, de fato, deu o chute na porta e incitou jovens dos grandes centros urbanos de todo o País a experimentar o desbunde e formas libertárias de encarar o mundo a sua volta, foram mesmo os Novos Baianos.

Como recomenda o refrão de É Ferro na Boneca! “necas de olhar para trás” seria palavra de ordem para muitos rapazes e garotas daquela geração. Àqueles que não quisessem se entregar a uma vida de resignado conformismo, ou aos que estivessem fatigados de tanto resistir, atentos e fortes, como recomendou Gil e Caetano em Divino Maravilhoso, o ultimato seria sair pela tangente, fugir pelas margens, e reinventar a própria existência, de forma alternativa e coletiva como fizeram os Novos Baianos (assista a íntegra do documentário Novos Baianos Futebol Clube, de Solano Ribeiro, e entenda por que).

Pouco antes de partir para Londres e enfrentar dois anos de exílio, ao lado do amigo Gil, Caetano foi conferir de perto o tão falado Desembarque dos Bichos, Depois do Dilúvio Universal  – o anárquico espetáculo que apresentou os Novos Baianos à juventude de Salvador. Em um gesto afetuoso e motivador, Caetano sentenciou: “Vocês me pedem que eu os apresente. Mas eu estou indo embora e só aceito deixar um bilhete para vocês. Estive esse tempo aqui e vi que vocês estão respondendo à nova Bahia com o mesmo humor terrível que ela questiona. Mandem brasa, Brasil!”

O texto foi reproduzido na contracapa de É Ferro na Boneca! e compilado com outros excertos que compõem a apresentação do LP, assinada por Augusto de Campos, poeta, tradutor e crítico musical dos mais serenos que, em seu clássico livro Balanço da Bossa (Editora Perspectiva), foi pioneiro em defender a vanguarda da nova geração de artistas baianos. “Há algum tempo, quando Caetano e Gil eram itens proibidos, eu adverti: ‘É preciso olhar para eles’. Sem se deixarem intimidar ou hipnotizar os Novos Baianos olharam para eles. Viram o que tinham de ver e partiram em busca de seu próprio caminho.” sintetizou Augusto, no verso do biscoito fino.  

Não vou me ater aqui a descrever canções – abro apenas um parêntese para as estupendas Colégio de Aplicação e Curto de Véu e Grinalda (ouça a versão do Conjunto D’Angelo), tampouco a reconstituir a história dos Novos Baianos a partir do encontro entre Moraes e Galvão, em 1967. À quem interessar possa, leitura mais que obrigatória é Anos 1970: Novos e Baianos, do próprio Galvão.

Para entender como toda essa efervescência cultural baiana eclodiu nos anos 1960 outro título essencial é Avant-Garde na Bahia, de Antônio Risério, que narra a incrível trajetória de Edgard Santos à frente da Universidade Federal da Bahia (leia Régua e Compasso, perfil do reitor publicado na edição 52 da Brasileiros).

Ao levar para a UFBA intelectuais europeus que fugiam do Pós-Guerra, como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi e o maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter (leia perfil), Santos revolucionou a UFBA e realizou o sonho de devolver à Bahia o protagonismo cultural do País, influenciando diversas expressões artísticas. Gil, Caetano, Tom Zé, Gal, Bethânia, Os Novos Baianos, Glauber Rocha, Helena Ignez, Rogério Duarte, e tantos outros ícones da cultura brasileira, no século 20, devem muito ao “Reitor Extraordinário”, como ele era carinhosamente chamado. 

Ouça a íntegra de É Ferro na Boneca! 

Mais: 

Leia reportagem sobre os 40 anos de Acabou Chorare, com depoimentos de Moraes Moreira e um poema, especialmente, criado pelo compositor para a Brasileiros

Leia também perfil de Bebel Gilberto, no qual a cantora narra encontros com os Novos Baianos, durante sua infância, quando ia visitar os músicos acompanhando o pai, João Gilberto. Em um deles, após sofrer uma queda, a menina emitiu as duas palavras que deram nome ao segundo álbum da banda.    

Boas audições e até a próxima Quintessência!


Comentários

Uma resposta para “É Ferro na Boneca!: o chute na porta dos Novos Baianos”

  1. conheça o som dos Leif´s, banda de Pepeu em 70!!!
    http://www.psicobr.com.br

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