“Vou dizer em sol/ Vou dizer em si/ Vou dizer em fá/ O que vim fazer aqui”, diz o refrão da canção que dá nome ao novo disco de Alzira E (também conhecida como Alzira Espíndola). Composto nos anos 1990 em parceria com Itamar Assumpção (1949-2003), o verso tinha, para a cantora, significado diferente naqueles tempos do que tem hoje: “A gente vai indo, levando a vida, sem se questionar muito. Mas de repente essa questão entra em questão: o que vim fazer aqui?”. Pois para Alzira, hoje aos 56, a pergunta surgiu nos últimos anos, do mesmo modo que vieram respostas – “você percebe que tem uma certeza”, diz ela. E a mais contundente das respostas parece ser o próprio disco O Que Vim Fazer Aqui, nono álbum da cantora, focado principalmente em sua longa e produtiva parceria com Itamar – de 1988 até os últimos dias do cantor.
Alzira esperou cerca de dez anos após a morte do Nego Dito (como era conhecido Itamar) para se voltar novamente ao repertório da dupla. Na verdade, diz ela, a coisa aconteceu naturalmente: “Depois desse período que eu me acostumei com essa saudade, eu pude mexer nesse baú de novo. (…) É como se todas essas forças misteriosas que a gente encontra na vida tivessem conspirado pra trazer esse repertório à tona agora”, diz. Acompanhada de um time de jovens músicos – Peri Pane (violão e violoncelo), Gustavo Cabelo (guitarra), Cris Scabelo (guitarra) e Marcelo Dworecki (baixo) –, Alzira entrou em estúdio para finalmente colocar no mundo essas canções “que demoraram esses 20 anos para se encaixar”. “Se hoje elas trazem alguma estranheza, lá atrás elas traziam muito mais”, diz ela.
A cantora recebeu a Brasileiros em sua casa, em São Paulo, para conversar sobre o disco, sobre Itamar e sobre a nova geração de músicos com quem convive.
Brasileiros – Em um show recente você disse que O que Vim Fazer Aqui é um disco que demorou mais de 20 anos para ser realizado. O que quis dizer?
Alzira E – A minha parceria com o Itamar teve início em 1988, quando ele começou a ouvir meus temas, desenvolver, e começamos a fechar músicas juntos. Daí fiquei trabalhando direto com ele, e em 1992 a gente conseguiu realizar o primeiro trabalho da parceria. Foi o AMME [título que traz as iniciais do nome da cantora], disco em que eu cantava músicas nossas, outras dele e parcerias dele com a Alice Ruiz e com a Vera Lúcia. Lá por 1994 eu falei para ele que a gente podia fazer algo com todas aquelas parcerias que a gente estava compondo, já que poucas entraram no AMME. E ele falou para a gente começar pelo show. Aí fizemos “O que Vim fazer Aqui”, para abrir o show – apesar de que agora, no disco, ela está no fim. E ela foi o motivo gerador para tudo isso começar, há uns 20 anos. Isso aconteceu lá atrás… Nós começamos a pensar no projeto, mas não concretizamos. Fizemos várias outras coisas, algumas músicas o Ney Matogrosso gravou, outras eu no Peça-me, por exemplo.
Brasileiros – São muitas parcerias?
A.E – Acho que ao todo fizemos umas 30 músicas juntos. Várias já gravadas, mas tinha sobrado esse acervo inédito. Então a gente foi trabalhando ao longo dos anos, dando uma direção para uma coisa, e não completamos. E agora, depois desse período que eu me acostumei com essa saudade, eu pude mexer nesse baú de novo. Além disso, do ano passado para cá eu me juntei com essa turma, o Cabelo, O Peri, o Dworecki, e depois O Cris. A desculpa inicial era festejar a maioridade do disco AMME, que fez 21 anos. E claro, eu queria retomar a parceria com o Itamar. Então, no fim, após dez anos que ele morreu eu consegui entrar no estúdio para gravar esse disco. É muito emocionante pra mim. Um momento de uma gratidão imensa, de eu ter carregado esse acervo, de estar agora com esse trabalho na mão.
Brasileiros – O processo de criação seu com o Itamar, como era? Um mandava música e o outro colocava letra? Vocês sentavam juntos?
A.E – Era de tudo quanto é jeito que você possa imaginar. Às vezes eu tinha um começo no violão e na letra e ele complementava. Às vezes eu pegava a letra dele e colocava música, e depois mostrava para ele. Às vezes tinha uma parte e eu queria continuar, e ele dizia: “Já tá bom assim! Essa frase é suficiente para a música inteira”. E não deixava…
Brasileiros – Sobrou alguma parceria não gravada?
A.E – Sim. Porque ele falou pra mim, em 2000: “Não vai inventar de fazer um disco com todas as nossa parecerias inéditas! Tem que guardar uma sempre na manga!”. E eu guardei.
Brasileiros – Você falou desses músicos jovens que estão te acompanhando agora. Como se deu esse contato? Você parece muito antenada no que está acontecendo de novo na música brasileira…
A.E – Nasceu de uma amizade misturada com admiração. Na época que eu comecei a compor com o arrudA [poeta], por volta de 2005, eu conheci o Peri. E comecei a acompanhar o trabalho dele, que é muito eclético, muito versátil. E nessa história eu acabei cruzando com a Trupe Chá de Boldo e outras pessoas. E por aí foi. Comecei a admirar muito os compositores. E acho que isso me ajudou muito. Botou um fogo nos meus olhos para fazer esse disco. Porque senti que a música que a gente fez há 20 anos colaborou no trabalho dessas pessoas – o Tatá Aeroplano, o Gustavo Galo, o Peri, a Anelis Assumpção e também as minhas filhas, Luz Marina e Iara Rennó. Colaborou para que eles também tivessem um caminho, que é o caminho do sucesso, mas sem ser esse sucesso da mídia. Um caminho de construir uma música, preservar uma raiz brasileira, de se influenciar pelos gênios que a gente tem aqui. Então comecei a ver nessa juventude um valor… E isso me aproximou muito deles. Sem contar que são músicos excelentes, de primeira linha. Têm uma leveza, uma competência. E no disco eu curti o negócio de ter só cordas. Fui passando as músicas para eles e fomos fazendo coletivamente os arranjos.
Brasileiros – Então essa turma tinha a ver com esse trabalho novo…
A.E – Sim, não é que eu larguei o pessoal que eu tocava antes. Acho que a música fala por si, a música quer. Então achei que ali era o viveiro para plantar esse novo som. Aconteceu naturalmente…
Brasileiros – Parece haver hoje uma forte retomada da vanguarda paulista, do Itamar e de outros músicos. Um maior reconhecimento do que se fez naquela época. Você sente isso?
A.E – Sim. No meio dessa juventude que eu estou pelo menos, vejo que existe um respeito e um interesse. Um reconhecimento do que foi, do que aconteceu. Sei que é uma minoria, mas é aí que eu me sinto à vontade. Quer dizer, trazer essas músicas agora é… Bem, eu mesma não conseguia tocar essas músicas antes, elas não se encaixavam. Elas demoraram esses 20 anos para se encaixar. Se hoje elas trazem alguma estranheza, lá atrás elas traziam muito mais.
Brasileiros – Sim, apesar de serem músicas antigas, o disco soa muito atual, e sem nostalgia…
A.E – Sim, ele está nascendo agora!
Brasileiros – Mas pensando no Itamar, tem uma saudade?
A.E – Não tem saudade, é uma coisa completamente saciável no momento. Não fica uma falta. E acho que é o que passou no som também. Não fica uma falta de bateria ou de qualquer outra coisa… É o caminho dessas músicas, elas quiseram nascer agora, demoraram tudo isso. Dá até aflição, porque elas são muito novas e muito antigas. Nunca tinha acontecido isso comigo. A gente sempre faz um disco no furor do momento, do que está acontecendo… Esse veio de outro jeito. É como se todas essas forças misteriosas que a gente encontra na vida tivessem conspirado pra trazer esse repertório a tona e deixado ele viver agora.
Brasileiros – Pensando nessa maturidade do repertório, e em uma maturidade sua, nesse momento da carreira… Parece que o próprio nome do disco, O Que Vim Fazer Aqui, passa isso, uma firmeza. Faz sentido?
A.E – É, tudo tem muito a ver. Acho que existe um momento na vida de todos nós em que cai essa ficha. A gente vai indo, levando a vida, sem se questionar muito. Mas de repente essa questão entra em questão: o que vim fazer aqui? Tanto como uma pergunta como quanto uma afirmação. Por isso não botei ponto nenhum no título. Para alguns pode ser só uma pergunta ainda, mas para outros, mais amadurecidos com o tempo, você percebe que tem uma certeza.
Serviço – Alzira E
Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino 1000)
Dia 11/4, às 21h
De R$ 5 a R$ 25
Deixe um comentário