Nerd que só, é difícil que Emicida não tenha pensado no Simonal quando resolveu dividir a plateia para cantar o final da última música (Salve Black) de seu novo show, que estreou com três datas neste fim de semana no Sesc Pinheiros. No show de sábado, quando um lado respondeu mais fraco, até a reclamação do rapper lembrou Simona: “Parece que cês num jantou”.
Mas se o cantor carioca (lembrado no verso “Ao ver o Simonal que cês não vai fuder” em Mandume) era reconhecidamente alguém que não se interessava por política no tempo que o País vivia a ditadura, o rapper vai no caminho inverso ao colocar em suas músicas e no seu discurso uma crítica clara e lúcida contra parte do País que opta pelo ódio e pela indignação seletiva.
Chapa, que fala sobre uma pessoa desaparecida, foi o gacho para lembrar da chacina em Osasco e Barueri (“Uma cidade onde 18 pessoas morrem e ninguém fala nada é uma cidade que está morta também”). Antes de Baiana, Emicida “dedicou” a música para os paulistas que esquecem dos nordestinos que construíram a cidade. Haiti, de Caetano e Gil, ganhou versos de Dedo Na Ferida e lembrou os haitianos que vivem em São Paulo.
Das participações especiais presentes no álbum novo, as ausências de Caetano Veloso (Baiana) e Vanessa da Mata (Passarinhos) no show não fizeram tanta falta quanto a de Rico Dalasam, forte promessa da cena e o único convidado ausente no time de novos rappers que participam da faixa Mandume. No palco, Drik Barbosa, Amiri, Muzzik e Raphão Alaafin, compareceram para reforçar a boa presença na música que é destaque no álbum e criaram um dos momentos mais impactantes da apresentação. Entram na conta de momentos emocionantes, a participação forte de J. Ghetto em Boa Esperança e de Dona Jacira na leitura do texto que faz parte de Mãe.
Na parte musical como um todo, com o show novo Emicida chegou mais perto do que ele abertamente declara como missão: uma apresentação de música brasileira que coloca o rap mais próximo da nossa música falada do que de qualquer referência do hip hop gringo – sem pender demais para o samba ou para o rock, equilibrando peso e delicadeza sempre com o auxílio da percussão, comandada pela animada e pra lá de eficiente dupla Silvanny Rodriguez e Carlos Café.
Atributo raro, especialmente quando consideramos a lógica de muitos nomes do mainstream brasileiro, o set list não conta com saudosismo precoce ou qualquer obsessão por hits, tendo como foco os dois últimos álbuns do rapper e músicas antigas pontuais (Zica Vai Lá, Triunfo e Rinha). Ponto positivo.
Para o rapper que não pensa em fases por receio do game over, falar em maturidade ou auge pode soar mal, apesar que é fato que este é seu melhor momento. O show do álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa conta demais sobre a boa leitura que Emicida faz da carreira e sua habilidade de transpor a narrativa do disco para o ao vivo. Tudo isso foi melhorado. No palco, ele não é o mesmo de dez anos atrás, talvez nem o mesmo do ano passado. Afinal, tudo mudou depois de sua ida para África.
Pode soar óbvio, mas é um show para ser visto agora. Quem perder, vai ver outro Emicida no futuro, com outra cabeça, outro repertório. É isso que ele dá a entender – e ele anda cumprindo o que diz.
Simonal acabou sucumbido quando foi associado ao regime militar, uma história esquisita de ostracismo onde o racismo nitidamente pesou na balança contra o cantor. Emicida mostra que conhece a história bem o bastante para não permitir que ela se repita com ele. Anotou a lição de casa?
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