Era um final de tarde, estava em um ônibus superlotado de Salvador, naquele 21 de agosto de 1989. Não havia lei que estabelecesse silêncio no transporte coletivo e os motoristas e cobradores adoravam ouvir música no volume máximo. Rádio, sempre rádio. Tocafitas eram caros e CD só podia ser comprado por poucos. Queriam compartilhar, claro, seu gosto musical na cidade mais rítmica do sistema solar. Não havia internet e passara todo o dia me desdobrando entre duas faculdades. A última frase que ouvi do locutor foi “em homenagem a Raul Seixas”, antes de entrarem os primeiros acordes de “Gita”, para mim, sua mais bela composição em parceria com Paulo Coelho.
Começa, como sempre, com as batidas de um sino, que pareciam anunciar um rito espiritual. “Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando, foi justamente num sonho que ele me falou…” Não sabia que Raul havia morrido, mas, naquele dia, a música entrou de modo diferente na minha percepção. Parecia mais cristalina do que permitia o limitado equipamento de som do ônibus. Arrepiei-me dos pés à cabeça. Raul havia se desmaterializado: “Eu sou a luz das estrelas/ Eu sou a cor do luar/ Eu sou as coisas da vida/ Eu sou o medo de amar/Eu sou o medo do fraco/ A força da imaginação/ O blefe do jogador/ Eu sou, eu fui, eu vou”.
Ao entrar em casa, minha me esperava aflita, como quem aguarda um parente para dar uma má notícia. Na lata, diz, “Raul morreu”. “Raul, que Raul?”, perguntei. “Raul Seixas”. A única frase que disse foi um “Não é possível”. Três semanas antes, por pouco não o conheci pessoalmente. Eu e um grupo de amigos fazíamos uma exposição no Shopping Iguatemi e tínhamos dedicado todo um painel com cartuns ligados à sua música. Um senhor que se dizia empresário dele prometeu trazê-lo nos dias seguintes para ver a homenagem. Raul fazia uma turnê nacional com Marcelo Nova, ex-vocalista da banda Camisa de Vênus. Juntos, tinham lançado uma obra-prima, o disco-testamento A Panela do Diabo. Era só o que eu ouvia quando estava em casa.
Um ciclo se completava ali. Para ele e para mim. Dezesseis anos antes, minha mãe tinha encomendado uma fita cassete de grandes sucessos ao empregado de uma loja – sim, havia esse hábito, o próprio vendedor, atento aos hits, organizava a seleção ou tentava atender a uma lista do comprador, sem se preocupar em deixar de vender discos. Fui com ela buscar a fita e o rapaz disse: “Não tenho todas as músicas que a senhora pediu e acrescentei algumas que acho que vai gostar. No meio esta Ouro de Tolo. Para um menino de seis anos de idade, havia algo de engraçado na letra: ir domingo ao zoológico dar pipoca aos macacos. Demoraria para descobrir que Raul pregava exatamente o contrário. E, desde então, acompanhei seus discos com atenção de fã. Ganhei o compacto de Gita, em 1974, e ele se fez presente em outras fitas encomendadas. Lembro de gostar muito daquela maluquice de ele dizer que havia nascido há dez mil anos atrás. Sim com erro de redundância mesmo. Raul abusava da licença poética em defesa do baianês – “o que vai dar PRA MIM comer” era contado com ênfase provocativa. Valia mesmo o recado que queria dar.
A primeira vez que fui a um enterro na minha vida foi no de Raul. Fui com Mariana, colega de faculdade e fã devotada. Chegamos e o caixão estava quase saindo. Corremos e vimos sua mãe, chorando sobre a tampa já lacrada. Não havia ali mais que cem pessoas. Imaginei que encontraria milhões de fãs e comentei se o melhor não teria terem sepultado ele em São Paulo, cidade onde morreu e era idolatrado por um universo bem maior de pessoas. Raul pertencia aos paulistas de todo Brasil, inclusive os da Bahia, que ali viviam. Pertencia aos bêbados de sempre – nunca entendi porque os embriagados moradores de rua da capital paulista adoram cantarolar Raul. Bebeu, deu porre, bateu depressão, saudade da família distante, a vida perdeu o sentido, canta Raul! Na cidade onde nasceu, infelizmente, estava esquecido. A axé music vivia seu grande momento de explosão nacional. Daniela Mercury gritava para quem quisesse ouvir que o canto da cidade agora era ela.
Pode ter sido coincidência, mas quando as rádios e TVs começaram a noticiar a morte de Raul, o novo rock nacional, aquele nascido na década que terminava, entraria em decadência, como o tempo mostraria. Os sertanejos forçavam os donos das rádios a mudarem a programação para sobreviver, enquanto Chitaozinho e Xororó e Leandro e Leonardo ameaçavam desbancar o reinado do RPM, cujo disco ao vivo vendera no ano anterior 2,5 milhões de cópias. E assim aconteceria. A nova década começou com uma peneira implacável. Poucas bandas sobreviveriam a partir dali. O caso mais dramático foi, sem dúvida, o do RPM, implodido por causa de desavenças entre seus membros. Cazuza morreria em 1990 e Renato Russo seis anos depois, ambos vítimas da AIDS. Raul vinha na contramão, mais uma vez, em uma ascendência quase messiânica. As novas gerações, que desconheciam sua imagem de beberrão, estavam mais interessadas em suas letras, na filosofia inconformista de vida que ele pregava.
Raul não era mais só um maluco beleza, daquele que encontramos nas cidades do interior, que não fazem mal nenhum e passam os dias a contar as estrelas e a medir em passadas a distância entre as cidades mais próximas. Virava a voz de uma geração perdida, a mesma que acreditaria ter derrubado o presidente Collor com seus rostos pintados, em 1992, sem dar conta de que ele caíra por incapacidade de fazer conchavos com o Congresso, como parece ter acontecido, de fato. Todos se voltavam para o fenômeno do raulseixismo, do sonho da sociedade alternativa, dos preceitos anarquistas de quem se sentia sozinho para reclamar da censura e dos punhos da ditadura militar que ameaçavam sua vida. Raul renascia mais uma vez. Normal para quem tinha vindo ao mundo havia tanto tempo e parecia acumular dez mil anos de experiências bem vividas e queria passar isso a todos.
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