“Um pedaço da arte contemporânea do Rio de Janeiro vem sendo escrito aqui”. René Machado não poupa louvores ao atual momento da Bhering. Erguido nos anos 30, quando o mundo se recuperava da Grande Depressão, o prédio de seis andares e 20 mil m² foi concebido para ser o principal pólo produtor de doces do Rio de Janeiro. O papel de fantástica fábrica de chocolates, porém, teve fim na virada do milênio e, desde 2005, uma migração incomum de artistas, fotógrafos e artesãos encontra, nos espaços fabris desativados, ocupações naturais para seus ateliês. A fruição artística no local é tamanha atualmente que fica difícil entender. “Daqui 10 ou 15 anos talvez a gente consiga dimensionar o que está acontecendo aqui hoje”, afirma René.
Aos 44 anos, o artista visual, assim como a imensa maioria dos quase 70 profissionais que produzem dentro da Bhering hoje, costumava ter um ateliê na zona Sul, região nobre do Rio.
Quando René chegou à Bhering, em 2011, algumas dezenas de ateliês estavam instalados, mas não havia demanda considerável de visitação. No mais recente evento abrigado pelo prédio, a Semana Design Rio, no primeiro fim de semana de novembro, o sucesso foi incontestável. “Entre quatro e cinco mil pessoas passaram por aqui”, comemora René.
Organizada por ele, porta-voz e curador das atividades, a inclusão da fábrica no roteiro da Semana Design Rio acabou sendo legitimada após o êxito das últimas edições da ArtRio realizadas no prédio. A participação massiva dos artistas e do público – comprador de obras, inclusive – são indicadores de que a Bhering comportaria facilmente outros eventos durante o ano.
No dia seguinte ao fim da Semana Design Rio, durante um almoço, elogios ao trabalho do curador. “Que sucesso, hein? Todo mundo adorou. O que você acha da gente fazer mais uns dois ou três destes no ano?”, sugere Eduardo Garcia, vanguarda da arte no prédio. “Olha, Dudu, fica a vontade para organizar”, brinca René.
Em 2005, numa viagem a Salvador, Eduardo, por coincidência, sentou-se ao lado de Rui Barreto, antigo amigo de infância e herdeiro da família dona da fábrica. “A gente foi batendo papo e ele me disse que havia desativado a área fabril daqui e levado tudo para Varginha (MG). Nesse meio tempo eu contei que precisaria me mudar do meu ateliê na Lagoa e ele me sugeriu que transferisse pra cá. Voltei da Bahia, vim aqui e pirei, lógico”, conta.
A intocabilidade dada às dezenas de máquinas, cujo tamanho e peso resultariam em gastos de transporte que a Bhering não poderia arcar naquele momento, assim como a segmentação vertical do prédio, com seis colunas com aparência de gigantescas chaminés, podem ter feito Dudu “pirar”. Ainda contribuiu para a certeza do artista a chance de erguer um espaço do zero e dar a ele o toque artístico que bem entender.
Dudu ficou sozinho no quarto andar entre 2005 e 2009, quando chamou o irmão para montar uma loja de móveis no segundo piso. Além dele, outros artistas foram convidados a ocuparem a fábrica, montarem seus ateliês. “As pessoas não embarcavam muito na ideia”, lembra. Galerias de arte como a Lurixs, de Ricardo Rêgo e as de Laura Marsiaj e Heloisa Amaral Peixoto, famosas no Rio de Janeiro, chegaram a pisar na fábrica mas não quiseram se vincular à época.
Muitos associaram essa desconfiança inicial de se instalar no local à insegurança de outrora. Localizado no bairro de Santo Cristo, o prédio da Rua Orestes, número 28, fica próximo ao morro do Pinto e da Providência, comunidades ainda não pacificadas em 2005 – há, desde 2010, uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Providência. “Tinha tiro a esmo. Na primeira exposição que eu fiz aqui, várias pessoas não chegaram. No meio do caminho ficaram com medo e voltaram pra casa”, recorda Dudu.
O temor quanto à violência do local se apoiava também no fato de que a zona portuária, assim como o centro da cidade, eram áreas esquecidas pelo poder público. Atualmente um ambicioso projeto, o Porto Maravilha, pretende, até 2016, transformar essa região, que abarca os bairros do Caju, Gamboa, Saúde e Santo Cristo. A iniciativa da Prefeitura, com apoio do Ministério do Turismo, busca dar vida a uma área de 5 milhões de m², com a revitalização de ruas e avenidas, além da construção de obras de mobilidade. Hoje muitas das principais vias que cercam a Bhering são verdadeiros canteiros de obras.
“A gente queria agregar e também dar vida a estes galpões. A vocação para a arte contemporânea e a cultura criativa já existem aqui, só faltava trazer o entorno para dentro da fábrica”, afirma René. Ele se refere ao projeto “Entorno da Fábrica”, iniciativa da artista plástica Maria Eugênia Baptista. O projeto foi o vencedor do prêmio Porto Maravilha Cultural, do Cdurp (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto, órgão gestor da prefeitura), e levou para dentro da Bhering mais de 70 moradores da região portuária para oficinas de artes gratuitas com uma dezena de artistas inquilinos do prédio.
“Foi emocionante. Tinham alunos meus, mais velhos, que contavam suas histórias com a fábrica. Muitos deles, quando crianças, vinham aqui pedir balas de chocolate e agora têm a oportunidade de aprender algo sobre arte no mesmo local. Isso é fantástico”, conta Maria Eugênia, do seu ateliê no quinto andar.
Cada artista ensinou de acordo com sua expertise. No final, uma grande confraternização, aberta aos alunos das oficinas e ao entorno gerou nos artistas um desejo de aprimorar, cada vez mais, a relação da fábrica com os moradores do Santo Cristo. Para eles, a nova região portuária que se desenha com a revitalização da área deve contemplar a população local, para que não haja segregação daqueles que vivem ali desde muito tempo.
No domingo, último dia de exposição dos ateliês na Semana Design Rio, por exemplo, eram várias as pessoas do entorno que se interessaram em conhecer um pouco mais sobre a produção artística que ecoa do prédio.
E isso tem aumentado cada vez mais nos eventos abertos ao público. Quem confirma é o seu Guilherme Régis, cuja história se atrela à da Bhering, pelo menos, nas últimas três décadas. Contratado como eletricista da então fábrica de chocolates, em 1983, ele ainda hoje auxilia nas questões elétricas, hidráulicas e, nos eventos, dá uma mão como ascensorista do principal e mais antigo elevador do prédio, com portas de ferro que precisam ser abertas manualmente.
No espaço de tempo entre ele despachar um grupo para baixo (do quinto para o primeiro andar) e aguardar o outro subir, falava um pouco sobre a sua história ali. “A gente percebia que a coisa não estava indo bem porque eles avisavam: ‘ó, aquela máquina ali vai parar de funcionar, aquela outra também’. Fomos percebendo. Eu ficava triste. Quando começaram mesmo as demissões foi horrível. Aqui trabalhavam quase duas mil pessoas. Hoje, com mais de 30 anos de serviço são só eu e mais dois”, conta.
Sobre o atual momento artístico, seu Guilherme parece sentir orgulho. “Toda essa festa aqui foi organizada por René. Ontem tinha mais de mil pessoas. O pessoal vem mesmo. Quem mora no bairro também vem”, explica. O orgulho não deixa de lado, porém, a nostalgia dos velhos tempos de fábrica, quando “dava gosto de trabalhar, porque tinha mais gente, mais festas, agora no Natal então, seria uma alegria só”.
Dia desses seu Guilherme e os inquilinos se surpreenderam com outra festa, feita por Will Gompertz, editor de arte da BBC Londres, dono de um currículo de peso: 20 anos como crítico de arte do New York Times e do The Guardian e um dos mentores da Tate Modern, a galeria de arte moderna mais visitada no mundo, em Londres. “Ele entrou na minha sala e quis me entrevistar. Ficou encantado de entender que aqui tem pessoas produzindo arte e que amam, tem paixão por aquilo que fazem, estão mergulhadas nisso. Eles apareceram da surpresa, foi uma festa. Veio ele e o cônsul da França no Rio”, relembra René.
Porém, a visibilidade alcançada pela Bhering ainda não comoveu o poder público, instado na figura da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Rio, a visitar, ao menos uma vez, o local. René diz que já convidou inúmeras vezes Sérgio Sá Leitão, secretário de cultura e também presidente da Rio Filme – empresa municipal que cuida da distribuição e fomento do cinema carioca -, para conhecer a fábrica.
“A gente vive sem investimento nenhum. Zero. O secretario foi incapaz de mandar um representante aqui, para conhecer e saber se precisamos de algo. Temos deficiências elétricas, hidráulicas. Não quero que eles venham passar tinta na parede, eles podem nos ajudar a cuidar da estrutura do prédio, tombado, inclusive, por eles”, afirma.
O tombamento e a desapropriação vieram no fim de julho de 2012 e surpreenderam os artistas locatários. À época, o prédio passava por um tenso imbróglio judicial e havia ido a leilão por causa de uma dívida tributária de R$ 150 mil com a União. O arremate, no valor de R$ 3,2 milhões, colocava em risco a continuação da Bhering como pólo de arte contemporânea. “O arrematante entrou com uma ordem de despejo e ai foi uma confusão. A gente se escondia de oficial de Justiça, ficava olhando, desligava o celular, era um terror quando ele vinha em nossa direção”, lembra René.
Ao município não havia interesse de podar o desenvolvimento artístico do local, como garantiu o prefeito Eduardo Paes aos inquilinos na sua única visita ao local. A transformação do prédio em patrimônio cultural do Rio de Janeiro, além de garantir na prática a manutenção da produção de arte contemporânea, estava alinhada com o objetivo maior, o projeto Porto Maravilha, que espera modificar a região portuária como um todo.
Essa modificação se intensifica cada vez mais, ao menos na fábrica. As palavras de René que abrem este texto não parecem distantes da realidade quando se conhece os espaços ocupados por boa parte dos artistas. A Bhering é, hoje, roteiro natural não só de dois grandes eventos de arte contemporânea da cidade – a ArtRio e a Semana Design Rio -, mas também de quem se interessa por isso.
A efervescência de sua produção transcende o comum. As máquinas do período fabril, deixadas para trás por mera dificuldade logística, funcionam como instalações artísticas nas mãos dos novos inquilinos da Bhering. São toneladas de ferro construídas para a fabricação de doces que hoje se camuflam em meio às outras criações artísticas do local.
Se antes a fábrica alegrava milhares de crianças Rio afora pelo chocolate produzido, hoje ela é incumbida de encantar adultos pela arte, em franco e crescente desenvolvimento.
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