Mulheres que fazem cinema – diretoras, roteiristas, produtoras e montadoras – discutem, no Recife, o que vem sendo feito por elas e os caminhos para ampliar a participação feminina no audiovisual. Esse é o objetivo do Festival Internacional de Cinema de Realizadoras (Fincar), aberto na quarta-feira (6) à noite.
O evento vai até sábado (9) no histórico Cinema São Luiz, no Paço do Frevo, e na sede da Aliança Francesa. O festival, que está em sua primeira edição, mostra a diversidade do audiovisual produzido por mulheres. A curadoria selecionou 30 obras de 19 países, entre curtas, médias e longas-metragens. Há ficção e documentário, estéticas e temas amplos. No primeiro dia do festival foram exibidas produções com protagonistas femininas variadas.
The Arcadian Girl (Canadá), de Gabirelle Provost, retrata uma garota que vende algodão doce;The Internacional (Argentina), de Tatiana Mazú, mostra a irmã da cineasta em sua militância política e no relacionamento com a família. Já Outside (Brasil), de Letícia Bina, dá voz a uma ex-presidiária; e Kbela (Brasil), de Yasmin Thayná, usa uma narrativa repleta de simbolismos para contar o processo de libertação do cabelo crespo.
O único longa da noite, Retratos de Identificação (Brasil), de Anita Leandro, tem como protagonista Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dora, que lutou contra a ditadura, foi torturada e exilada em vários países, até cometer suicídio na Alemanha. A história é mostrada com narrativas de sobreviventes a partir dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), além de entrevistas históricas da própria militante. A convidada para debater o filme foi Clarice Hoffmann, idealizadora e coordenadora do projeto Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, que também lidou com as fichas do Dops para fazer o seu trabalho.
Hoffmann destaca que os temas dos filmes são tão variados quanto os assuntos que interessam à parcela feminina da sociedade. “As mulheres falam sobre tudo. Imaginar que mulher só fala de mulher é um pouco restrito. Na verdade, o que se quer mostrar aqui é produção feita por mulheres. Os assuntos, as temáticas vão ser as mais diversas. E o pensamento dessas mulheres sobre a produção também”
Maria Cardozo, diretora artística e curadora do Fincar, reforça o caráter de reflexão do espaço – questões como representatividade, formação de público, estímulo ao surgimento de novas realizadoras. “Acreditamos também que exibindo os filmes, a gente possa trazer referências para estudantes de cinema que estão começando a lutar pelo seu protagonismo na realização cinematográfica”, diz.
Na abertura de cada sessão, um dado é apresentado pelo festival: menos de 20% dos filmes lançados nos últimos 20 anos foram feitos por mulheres. Levantamento da Agência Nacional de Cinema (Ancine), divulgado em março deste ano, mostra que 41% das obras brasileiras tiveram produção executiva exclusivamente feminina. Nas funções de roteirista e de direção, no entanto, a participação feminina é de 23% e 19%, respectivamente.
Na avaliação de Maria Cardozo, é possível encontrar semelhança entre o papel reservado à mulher na sociedade e o reflexo disso no mercado audiovisual. “No entendimento de uma sociedade machista, a mulher vem para organizar, cuidar do grupo. É como se a relação de produção, que é uma gestora de equipe, tivesse relação com uma gestora de família, como um papel que cabe à mulher, e não como autora e protagonista. Os números revelam de fato o que eu consigo visualizar no meio em que eu trabalho. E é uma questão mundial”.
Apesar dos dados, as realizadoras existem em grande número. As inscrições de filmes para o festival demonstram: foram 2.349 obras de 11 países recebidas pela curadoria. A diretora artística do Fincar acredita que o evento contribui para ampliar ainda mais essa produção. “A partir do momento em que você reúne mulheres que produzem, realizam, elas estão se conhecendo, fazem uma teia de conexões e isso, com certeza, estimula novas produções”.
A mulher na tela
O Festival Internacional de Cinema de Realizadoras também abre espaços para a discussão sobre como a mulher é representada no cinema, debate que pode ser expresso em números. O Instittuto Geena Davis, que estuda a presença do gênero feminino no audiovisual no mundo, divulgou em março deste ano uma pesquisa que revela que cerca de 73% dos brasileiros dizem que filmes e programas televisivos mostram as mulheres de maneira exageradamente sexualizadas.
Rodas de diálogos se encarregam de temas como o cinema negro no feminino, que será debatido hoje (7), às 14h, no Paço do Frevo. A discussão será conduzida pelo Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine), projeto que leva produções do gênero a novos públicos e discute essa representação. Janaína Oliveira, coordenadora do Ficine e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez a curadoria dos filmes africanos do Fincar, exibidos na sexta-feira. Todos os títulos são dirigidos por mulheres de diferentes nacionalidades.
Janaína fala de um estereótipo comum vinculado à mulher negra. “Historicamente, não só no cinema brasileiro mas no mundial, a mulher negra é representada de forma negativa – como unicamente um corpo, um objeto com atributos negativos, que corrompe, que seduz. É um corpo, digamos assim, para o mal”, critica. “Eu acho que essa representatividade vem mudando. Muito recentemente e numa escala que ainda precisamos expandir. Mas já vejo uma transformação e, sobretudo, porque você começa a ter atrás das telas um universo de pessoas refletindo sobre esses estereótipos e querendo transformar essas personagens negras de forma mais complexa”.
Ter não só a mulher negra representada na tela, mas atrás dela, como realizadora, garante que esses estereótipos sejam quebrados e que o imaginário dessas personagens seja construído não por um olhar estrangeiro, mas pela pessoa que vive e se identifica diretamente com elas. É o que explica Yasmin Thayná, cineasta que apresentou seu curta Kbela na noite de estreia.
“Acho que essa questão da representatividade e representação de quem fala e quem olha é muito diferente. A realizadora negra, quando retrata algo da sua cultura, da sua história, fala de um lugar dela. Quando é uma mulher, um realizador não negro, ela fala de um olhar sobre alguém. Isso faz total diferença, porque um código de pertencimento, para uma pessoa não negra, não vai fazer tanta diferença como para uma pessoa negra. Aquilo significa a humanização da prática, às vezes, pequena”, afirma a cineasta, de Nova Iguaçu (RJ).
O filme Kbela, feito por ela, usa uma linguagem poética para mostrar o processo de fortalecimento da identidade da mulher negra a partir da libertação do cabelo crespo de todas as regras e alisamentos impostos na convivência social. O cabelo é o ponto de partida para uma afirmação política do empoderamento dessa população. E o detalhe a que se refere Yasmin é percebido nos debates sobre o filme.
“Uma vez, a gente estreou Kbela em Salvador e uma menina negra, depois da exibição, na hora do debate, pegou o microfone e disse que nunca esperou ir ao cinema e ouvir o som de um cabelo crespo sendo penteado. Talvez uma pessoa não negra nunca tenha pensado sobre isso, enquanto para uma pessoa negra faz total sentido, é parte fundamental”, observa.
No Cinema São Luiz, no Recife, relatos semelhantes surgiam na plateia. Muitas mulheres pediam o microfone não para fazer perguntas, mas para dizer ao público que se identificavam com o filme. Lembravam da infância, dos sacrifícios para adotar um cabelo liso, de outras pessoas tentarem diminuir a identidade e a estética negras em importância e beleza.
Uma das participantes do público aproveitou o espaço para fazer uma crítica ao festival. A atriz Isabel Freitas reclamou do cartaz do evento, em que uma das mulheres representadas, que está abaixo das outras, tem o cabelo crespo. Para ela, é preciso tomar cuidado com o simbolismo do material. A diretora artísita do Fincar respondeu que a intenção não foi essa, mas que pedia desculpas e que a equipe levava em conta a crítica e que faria a reflexão necessária.
Isabel Freitas foi ao cinema acompanhada de adolescentes integrantes do Maracatu Encanto do Pina. “Nos mobilizamos para assistir ao Kbela porque elas estão nessa fase de afirmação da identidade”, disse. Depois da sessão, o grupo de jovens tirava fotos e mexia nos cabelos cheios e encaracolados em frente ao espelho do hall principal.
*Com reportagem da Agência Brasil
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