Guilherme Vaz, o incorruptível

Convite da exposição Agnus Dei. Realizada em 1970 na Petite Galeria, no Rio de Janeiro, a mostra reuniu trabalhos dos artistas Guilherme Vaz,  Cildo Meirelles e Thereza Simões. Foto: reprodução / arquivo pessoal
Convite da exposição Agnus Dei. Realizada em 1970 na Petite Galeria, no Rio de Janeiro, a mostra reuniu trabalhos dos artistas Guilherme Vaz, Cildo Meireles e Thereza Simões. Foto: reprodução / arquivo pessoal

Aberta em 26 de junho de 1970 na Petite Galeria, no Rio de Janeiro, a exposição Agnus Dei deveria reunir ao longo de três semanas, uma para cada artista, trabalhos de Cildo Meireles, Thereza Simões e do maestro e compositor Guilherme Vaz, que recém-transitava pelo campo das artes visuais e abria trincheiras para a arte sonora e a arte conceitual no País. Afeito ao tratamento de choque característico das vanguardas, Vaz teve sua participação cancelada na mesma noite em que seu terço de mostra foi iniciado. Em 2013, em uma entrevista veiculada em formato de podcast (ouça), conduzida e editada pelos artistas Franz Manata e Saulo Laudares, o maestro recordou a deliciosa peça pregada no público. 

“Minha exposição não tinha na­da além de um bilhete no fundo da galeria. Tinha garçons servindo coquetéis e as madames ficavam es­pe­rando os quadros que seriam comercializados serem colocados na parede. O tempo foi passando e, como nenhum quadro chegava, a verdadeira ira veio depois das 11 da noite, juntamente com a resistência surda que, acrescida do álcool, fez com que as pessoas revelassem todos os seus conservadorismos.”

O tal bilhete afixado, uma das várias “instruções” dos trabalhos de Vaz, esclarecia que não havia quadros ou obras espalhadas no espaço expositivo porque, simples assim, cada espectador ali presente era uma obra de arte.

Com formulações sintéticas e inventivas como essa, Vaz acumula 50 anos de carreira desde que, radicado na Bahia, em 1967, começou a se aventurar em experimentações jazzísticas com o Grupo Calmalma de Jazz Livre, quinteto que contava com a participação do saxofonista Victor Assis Brasil (1945-1981), um dos mais importantes nomes na história do instrumento no País. A breve existência do combo instrumental é só um dos destaques da mostra Guilherme Vaz – Uma Fração do Infinito. Por meio de mais de 40 trabalhos, entre desenhos, partituras (chamadas por ele de “balizamento gráfico”), objetos sonoros, documentos, fotos, correspondências, registros de áudio e videoinstalações, a mostra apresenta meio século de criações engajadas com a identidade cultural brasileira. Com curadoria de Franz Manata e entrada gratuita, a exposição fica em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, até 7 de julho.

Nascido em 1948, em Araguari, no interior de Minas Gerais, radicado na capital do País, aos 13 anos,  Vaz iniciou sua formação musical no Instituto de Artes de Brasília e foi pupilo do maestro Reginaldo Carvalho, um dos pioneiros da música concreta no Brasil. Em 1967, com o decreto do AI-2 e logo após uma intervenção militar na Universidade de Brasília, onde avançava os estudos com o maestro Rogério Duprat, Vaz migrou para Salvador. Na Universidade Federal da Bahia tornou-se discípulo de outro artista divisor para a música de vanguarda do País, o compositor Walter Smetak. A proximidade com os objetos sonoros construídos pelo educador suíço despertou em Vaz o interesse pela arte conceitual e abriu caminho para que ele se multifacetasse.

Convidado por Nelson Pereira dos Santos para compor a trilha de Fome de Amor (1968), considerada o marco zero da utilização da linguagem concretista na sonorização do cinema nacional, Vaz logo foi visto como um estranho no ninho. Recluso, há anos sem falar com a imprensa, em uma entrevista de 2009, para o jornal Correio Braziliense, ele relembrou esses dias de dissonância com a ordem estabelecida. “Não se tinha nos estúdios a menor ideia de música concreta e isso causou um quase pânico por parte dos técnicos. Me lembro quando comprei uma caixa de bolas de pingue-pongue para jogá-las no chão, gravar seu som pipocante sobre o solo e deixá-las cair de uma escada alta sobre os microfones. Música a partir de sons da realidade não era admitida.”

Além de Nelson Pereira dos Santos, o maestro mineiro fez importantes colaborações com Julio Bressane, a primeira delas em O Anjo Nasceu (1969), e também deixou sua marca autoral, como produtor e arranjador, no primeiro álbum solo de Ney Matogrosso, de 1975. A partir dos anos 2000, Vaz se aproxima do documentarista Sérgio Bernardes e compõe trilhas sonoras para uma série de filmes que abordam questões ambientais e sociais do Brasil. Um desses trabalhos, a videoinstalação Nósenãonós (2003), de 25 minutos, está presente na exposição.

Projetado em três telões, o filme escancara uma mazela histórica de nosso País: a desigualdade social. Iniciando a narrativa com tomadas aéreas da mata selvagem do Rio de Janeiro, passando por morros apinhados de favelas até chegar ao Rio idílico da zona sul, Bernardes e Vaz depois nos conduzem ao norte do País, em planos sequências que retratam o cotidiano de indígenas. De forma incisiva e poética, ao contrapor essas imagens de um Brasil ancestral com o universo violento das comunidades cariocas, eles colocam em xeque, por exemplo, o conceito de civilização em uma sociedade onde a barbárie é um dado integrado ao cotidiano.  

Apaixonado por nossa diversidade étnica e cultural, a partir dos anos 1970, e por mais de 20 anos, Vaz se aproximou de povos indígenas do Norte e de sertanejos do Centro-Oeste do Brasil, com longos períodos de imersão em tribos e comunidades rurais. A guinada representou um gesto de total recusa ao que ele considerava um formalismo nocivo no meio da arte conceitual.

No espaço expositivo dividido em dois ambientes, um deles é dedicado a retratar essa imersão, como comprovam as pinturas feitas por Vaz nos anos 1970 em parceria com Carlos Bedurap Zoró, índio da etnia Gavião-Ikolem, de Rondônia. Em telas verticais, orientado por Vaz, Zoró reproduz, em maior escala e com forte impacto visual, temas geométricos comuns em sua tribo. No podcast de 2013, o artista avaliou que a falta de valorização de elementos formadores de nossa identidade cultural, como essas pinturas tribais, se deve à subordinação a convenções acadêmicas e intelectuais.

“Apesar de o meu trabalho passar longe do construtivismo, eu queria que a geometria indígena, feita à mão livre, atingisse uma determinada categoria. Nessa geometria existe uma filosofia, um pensamento de mundo. É uma geometria da vida. Uma das questões que me incomodam no construtivismo brasileiro é que tudo acontece distante da geometria indígena, distante dos sertões.”

As impressões de Guilherme Vaz sobre este Brasil profundo resultaram ainda na produção de mais de dez álbuns autorais, também reunidos nessa mostra essencial, que contribui para dimensionar a importância desse artista que traduz muito de nosso País, enquanto, paradoxalmente, segue desconhecido da maioria dos brasileiros.

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Veja teaser da exposição Guilherme Vaz – Uma Fração do Infinito” produzido na ocasião em que a mostra esteve em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro

Ouça o primeiro álbum solo de Ney Matogrosso, de 1975, que teve a produção e arranjos assinados por Guilherme Vaz 



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