No dia 28.6, uma análise polêmica veiculada pelo jornalista Zeca Camargo no Jornal das Dez, do canal Globo News, causou furor nas redes sociais. Quatro dias após a morte trágica do cantor sertanejo Cristiano Araújo, 29, e de sua namorada, Allana Morais, 19, vitimados por um acidente automobilístico, Zeca não poupou críticas negativas ao questionar a dimensão da cobertura jornalística dedicada à morte do cantor.
Na crônica, que caiu como bomba em redes sociais como o Facebook e o Twitter, ele defendeu seu ponto de vista sobre a relevância meteórica de Cristiano, e atribuiu a repercussão descabida da tragédia ao cenário decadente da música de cunho mais popular feita hoje no País: “O cantor talvez tenha morrido cedo demais para provar que tinha potencial para se tornar uma paixão nacional. Nossa canção popular é hoje dominada por revelações de uma música só, que se entregam a uma alucinada agenda de shows para gerar um bom dinheiro antes que a faísca desse sucesso singular apague sem deixar uma chama mais duradoura. E nesse cenário qualquer um pode, nem que seja por um dia, ser uma estrela maior. Teria sido esse o caso de Cristiano Araújo?”, questiona.
Parágrafos antes, Zeca também associa o episódio a um fenômeno recente do mercado editorial brasileiro. “Como, então, fomos capazes de nos seduzir emocionalmente por uma figura relativamente desconhecida? A resposta está nos livros de colorir.” A multiplicação de vendagem de títulos dessa frívola recreação para adultos, segundo o jornalista da Rede Globo, é sintomática para definir “a pobreza da atual alma cultural brasileira”. Em outro momento em que convida o público à reflexão, Zeca sugere: “Nossa história musical e mesmo o passado recente prova que temos tudo para adorarmos ídolos de verdade e para chorar de verdade”.
Ídolo de verdade – por quem o Brasil pouco dispensou lágrimas e comoção em sua partida, diriam alguns – foi Antônio Carlos Jobim. O maestro carioca certamente figura a lista de sumidades que fazem a alegria auditiva de brasileiros com repertório cultural sofisticado, como Zeca. Em 2008, Tom Jobim foi eleito pela revista Rolling Stone, em votação que reuniu cerca de 70 jornalistas da mídia cultural do País, o artista mais importante da nossa música popular. Quatro anos mais tarde, no documentário A Música Segundo Tom Jobim, do mestre Nelson Pereira dos Santos, Tom emocionou milhares de pessoas por meio de intérpretes insuspeitos, como Frank Sinatra, Oscar Peterson, Ella Fitzgerald, Gary Burton e Errol Garner, estrelas mundiais a atestar a universalidade brasileira de sua música. Tamanha é a força dessa música, o filme dispensa depoimentos ou narrativa em off.
No entanto, dias atrás, na décima primeira edição da FLIP, e na contramão do silêncio opinativo do filme de Nelson, o incendiário José Ramos Tinhorão voltou a afirmar que o maestro carioca é supervalorizado. Personagem fundamental para a historiografia musical do País, ninguém há de duvidar, Tinhorão também voltou a mostrar a sanha feroz de sua artilharia contra a bossa nova. Em mesa dividida com outro historiador essencial de nossa produção popular, o também compositor Hermínio Bello de Carvalho, um debate bem-humorado e provocativo protagonizado pelos dois octogenários aproxima a polêmica acerca de Tom Jobim da crônica bombástica de Zeca Camargo sobre Cristiano Araújo.
A controvérsia em torno da bossa e do maestro, claro, não ressonou como a deflagrada por Zeca em sua análise sobre a relevância do ícone do chamado sertanejo universitário. No entanto, sisudas e aparentemente díspares, as duas brigas explicitam a complexidade da cultura popular do País em momentos distintos, como os anos 1960, da bossa e de Tinhorão, e a década de 2010, de Zeca e Cristiano.
“Eu tenho uma pena, porque como pessoa era excelente, mas tinha um equívoco fundamental: achava que compunha música brasileira”, afirmou Tinhorão sobre Tom. “Acho que Tinhorão borra a figura do Tom com tintas negras e tão sangrentas. É injusto. Não digo isso por mim. Tom era reverenciado por um parceiro meu muito querido, chamado Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha”, golpeou Hermínio.
A remissão a Pixinguinha é carregada de simbolismo. Afinal, em 1922, para desgosto do purismo musical tão caro a nacionalistas como Tinhorão, mestre Alfredo teve os ângulos criativos bastante ampliados justamente após macular sua integridade musical no Velho Mundo, nos seis meses em que ele se apresentou com os Oito Batutas em Paris.
O bate-papo musical entre o choro e o samba de Pixinguinha e a tradição do jazz, fez com que o gênio brasileiro aderisse ao saxofone e voltasse para o Brasil com a bagagem cheia de novas possibilidades musicais, que influenciariam muito do melhor que a música popular do País produziu depois. Do samba praiano de Caymmi ao samba moderno dos conterrâneos Antônio Carlos e Jocafi, da bossa inaugural de João Gilberto ao samba-jazz afro-altivo de Moacir Santos, a miscigenação sempre fez bem para a musica popular do Brasil.
Na FLIP, no entanto, Tinhorão denunciou as atrocidades desse imperialismo ao esclarecer que a cooptação cultural é um artifício da indústria que, com o apelo dos ídolos de massa, quer apenas vender equipamentos importados de som. Elucidando sua teoria, ele questiona a capacidade de produzirmos esses equipamentos e recorre à uma defesa irônica da farmacologia tupiniquim. “Por exemplo, não existe uma indústria farmacêutica brasileira, com patente brasileira. Biotônico Fontoura é a única coisa brasileira que conheço em termos de remédio.”
Ao celebrar o, para muitos, intragável Biotônico Fontoura, e fazer engolir, em seco, a insignificância de Tom Jobim e da bossa nova, Tinhorão, da mesma forma que Zeca, atesta que o patrulhamento não é a melhor forma de interpretar os fenômenos de cultura de massa na música popular do País.
Ironicamente, como prova de que a bossa nova rendeu, sim, muitos frutos para a música brasileira, dias após os ataques de Tinhorão, chegou ao mercado a caixa de CDs Bossa é Bossa, do selo Discobertas (veja na galeria abaixo). Nela, dez álbuns lançados na primeira metade dos anos 1960 comprovam, por meio da música de artistas como Hélio Mendes, Celso Murilo e Célio Balona, que a bossa exerceu grande influência em músicos, intérpretes e compositores e fez evoluir a música instrumental do País.
Voltando a Tom Jobim, em entrevista à Brasileiros, em 2010, o maestro paulistano Julio Medaglia assim referiu-se a ele. “Era da área da extrema sensibilidade musical. Fazia coisas como: ‘É pau, é pedra, é o fim do caminho’. Repetia isso 20 vezes, uma coisa absurdamente simples, daí vem o Leonard Feather, o maior crítico de jazz americano, e decreta: ‘Essa é uma das 100 maiores melodias do século 20’. Porra, o cara repete duas notas e é uma das 100 melodias do século?! Essa sensibilidade que Tom Jobim tinha é algo único. Coisa que só Mozart ou Erik Satie faziam.”
Na mesma entrevista, minutos depois, Medaglia metralha o rap: ‘O negro americano foi quem criou o valor cultural do século em seu país (o jazz) e agora chega esse pessoal da periferia de Los Angeles, puxa um fumozinho, acha que não deu certo na vida porque a humanidade está contra ele, e vem com essa verborragia insuportável do rap’.
Criticando o que considera um símbolo da decadência da música popular do Brasil, Medaglia arremata. “Daí, vem o cara da favela e decide imitar esse camarada. Justamente o brasileiro vai querer imitar o americano? O cara nasce em um País que tem a música popular mais rica e sensível do mundo, feita por negros geniais como Pixinguinha, Nelson Cavaquinho e Cartola, e pergunto: ‘Esses caras vieram de onde?’. Ora, também vieram da favela! Vinham de regiões humildes, mas dentro de si tinham uma sofisticação francesa.”
Maestro com inúmeras colaborações para a música popular, Medaglia é também teórico respeitado e afeito a provocações tão polêmicas como as de Tinhorão. No calor da situação, ele tripudiou o rock brasileiro dos anos 1980, ao escrever um artigo-bomba em que trata as manifestações roqueiras do período como a AIDS da nossa música. “Um País que possuía uma das mais ricas e inventivas culturas populares deste planeta ficou reduzido a um imenso e imundo para-lama de sucessos, através de um rockinho tupiniquim que nada mais é que um subproduto desse vasto detrito que é o rock internacional de hoje”, argumentou.
Mesmo não tendo o crivo de intelectuais como Medaglia e Tinhorão, fenômenos como o rock consagrado pela juventude brasileira dos anos 1980, o rap que se faz porta-voz das periferias e o sertanejo universitário, onipresente no cenário musical de hoje, são manifestações legítimas, que ajudam a entender a complexidade de um País continental fracionado pelo gosto popular.
O embate entre bom e mau gosto não explica a atual indigência cultural do País, como defende Zeca. O rasante estético de expressões patrulhadas, como o funk ostentação, talvez seja um retrato claro de que a educação pública propiciada aos atuais e futuros ouvintes, muitos deles analfabetos funcionais, não provoca estímulos à imaginação. Seja pra criar ou para apreciar música. Para muitos críticos e historiadores, há um abismo entre a música popular de Tom Jobim e a de Cristiano Araújo, mas isso não impede que eles se encontrem no banco da incompreensão.
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