Garrincha, novo espetáculo do diretor teatral norte-americano Bob Wilson, que marca a sétima parceria do artista com o Sesc São Paulo e ficará em cartaz na unidade Pinheiros até 29 de maio*, é experiência dramatúrgica análoga a uma boa partida de futebol. Com o perdão da associação óbvia com o vocabulário do esporte bretão, um jogo cênico de tirar o fôlego.
Com direito a prorrogação, o espetáculo, que é protagonizado pelo ator, bailarino e coreógrafo Jhe Oliveira, dura exatas duas horas. Alegórico, multicolorido, musical e impregnado de brasilidade, Garrincha persegue, com leveza, graça e provocações, a história do craque revelado no Botafogo de Futebol e Regatas, o octogenário clube alvinegro carioca da estrela solitária estampada no brasão – símbolo que, aliás, inspirou o título da biografia de Manuel dos Santos, nome de batismo de Garrincha, escrita por Ruy Castro.
Claro, na contramão do rigor cronológico e formal do biógrafo carioca, Wilson, encenador afeito a dribles narrativos estonteantes como os de Mané, confunde situações temporais e impregna a montagem de elementos factuais dispersos, fora de ordem cronológica, nas vozes de 16 atores/narradores/cantores/dançarinos. Uma polifonia – classificada no subtítulo de Ópera das Ruas – festiva e melancólica. Justo. Afinal, se Garrincha simbolizava “a alegria do povo”, o pano de fundo histórico da alegria que emanava de suas pernas tortas, o Brasil, de Juscelino a Médici, também foi marcado por doses generosas e equivalentes de tristeza.
Municiado de extrema sutileza, Wilson entrelaça elementos narrativos dos 47 anos de vida do craque com a história recente do País. De tal forma que, em uma transmissão radiofônica, por exemplo, referências ao fatídico 13 de dezembro de 1968, dia do decreto do AI-5, misturam-se à cerimônia de fundação de Brasília e culminam no rock psicodélico, tropicalista e emancipado d’Os Mutantes, que no mesmo ano do AI-5 surge nas ondas do rádio a cantar Algo Mais, canção que, ironicamente, foi vendida, como jingle, para a petrolífera norte-americana Shell.
Fracionada por Wilson e o coautor de Garrincha, o dramaturgo norte-americano Darryl Pinckney, em prólogo, cinco atos e epílogo, a peça, primeira produção cem por cento brasileira do diretor, diverte e emociona ao transformar em uma espécie de chanchada tragicômica e tropicalista a saga errante do craque que eternizou a camisa 7 do Botafogo com a magia do seu bailado em campo – “o melhor ponta-direita do mundo”, “o maior driblador da história”, muitos defendem até hoje, 33 anos após a morte do atleta em decorrência de uma cirrose hepática.
Claro, a peça também destaca a relação tempestuosa com a cantora Elza Soares (Naruna Costa), que durou 16 anos e deu ao casal o filho Garrinchinha, morto em um acidente automobilístico em 1986, quando voltava de Pau Grande, distrito de Magé, município fluminense onde Garrincha nasceu e foi enterrado – o filho voltava de uma visita ao túmulo do pai. Perda que sugere um flash back trágico para Elza, que, em 1969, perdeu a mãe, Rosária, também em um acidente automobilístico, quando Garrincha, alcoolizado, a bordo de um Galaxie 500, colidiu com um caminhão que entrava na rodovia Presidente Dutra. O episódio é aludido em cena tocante, de movimentos sutis, quase congelados, e um silêncio desconcertante que é rompido com o barulho ensurdecedor de um carro em frenagem abruta.
Além de Oliveira e Naruna, o elenco de Garrincha é composto por Bete Coelho, Carol Bezerra, Claudia Noemi, Claudinei Brandão, Cleber D’Nuncio, Dandara Mariana, Daniel Infantini, Fernanda Faran, Ligia Cortez, Lucas Wickhaus, Luiz Damasceno, Nathália Mancinelli, Roberta Estrela D’Alva e Robson Catalunha.
À maneira de Wilson, todos os “jogadores” em cena exercem predicados dramáticos multidisciplinares. Atuação, canto e dança, impregnados de irreverência, fundem-se à trilha sonora contagiante, assinada por Hal Willner, e executada por um escrete de chorões que batem um bolão: Alexandre Ribeiro, clarinete, Fabricio Rosil, cavaquinho, João Poleto, flauta e saxofone, Roberta Valente e Samba Sam, percussão, e Zé Barbeiro, violão de sete cordas.
No programa de Garrincha, Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, que propôs o espetáculo a Wilson, afirma: “Garrincha nasce a partir de uma pergunta: seria possível convergir o teatro de Wilson e o imaginário brasileiro?”. A resposta, expressa em duas horas memoráveis no palco do Sesc Pinheiros, não deixa dúvidas que sim.
* Consulte a disponibilidade de ingressos na página oficial do Sesc Pinheiros
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