Tempos modernos. Receber uma notícia tão definitiva por rede social. Tem sentimentos que a gente só compreende com o tempo e outros sentimentos que se potencializam com ele. É difícil, mestre.
Hoje recebo a notícia que Myltainho se foi. Myltainho pelo tamanho e generosidade. Mas não se engane, Mylton Severiano era um homem firme, sério, correto, decidido, engajado, humano… Humano. Repórter com R maiúsculo, Jornalista com J maiúsculo. Um dos mais generosos editores que se poderia conhecer. Um texto incrível.
Não poderia ter ido de outra maneira. Foi um infarto na noite da sexta-feira (9), em Florianópolis (SC). Sentiu uma dor no estômago, foi ao médico que lhe receitou um remédio qualquer. Voltou para casa e morreu do coração. Estômago que conduziu muitas pesquisas que culminaram em seu livro “Em se plantando tudo dá”. Coração que acolhia jovens idealistas, abrigava eternos amigos e guardava a força e o amor a escrita e ao povo. O velório é neste domingo (11), a partir das 9h, no Cemitério Getshêmani, em São Paulo.
Preciso dizer que desde muito pequena quis ser jornalista. Tive algumas referências, como meu avô que era jornalista. Mohamad Schabib. Minha lembrança daquele pequenino gigantesco homem, que convivi tão pouco, é a imagem dele sentado em sua mesa com muitos livros em volta – todos com anotações – e um rádio com notícias de além mar. Os versos publicados em um livro em árabe como legado eterno (a zoeira para conectar seus filhos e netos com o sangue nas veias). Meu tio, Ahmad Schabib, e sua paixão e dedicação quixotesca ao jornalismo. Tive referências distantes (porém presentes) também: Hunter Thompson, García Marques, Galeano, Gay Talese, João Antônio, Sergio de Souza (que pude conhecer e entrevistar), Caco Barcellos, José Hamilton Ribeiro, Narciso Kalili, Eliane Brum… Tenho, hoje, jornalistas que eu sigo para não desistir de tudo. E tive Myltainho.
Myltainho foi a materialização de qualquer idealização de jornalismo que eu poderia ter. Minha segunda faculdade de jornalismo foi o tempo que pude trabalhar com ele na redação da revista Caros Amigos, junto de seu grande amigo Amancio Chiodi, e nos projetos de livros, em parceira com o grande Palmério Dória, que pude acompanhar e colaborar. Me reforçou o “instrumental” necessário para o jornalismo: Ouvidos, sensibilidade e liberdade.
Myltainho acreditava em quem acreditava nas PESSOAS, no POVO. Ele gostava de histórias, de contá-las. Ele se indignava com as manipulações, com as corrupções. Ele lutava contra a opressão. Era um registro vivo e ativo da história. Myltainho me deu espaço até para o absurdo, liberdade e caminhos para escrever. Fiz minha primeira capa com ele na edição. Quando de 2008, fomos eu, Fernando Lavieri e o amigo Amancio Chiodi, para Paraisópolis ocupada por PMs. Ele me ensinou o valor da rua. Ele se vai, nos deixa com muita dor e com a responsabilidade de seguir o seu belíssimo legado.
Vida e obra
Nascido em Marília, interior de São Paulo, em 10 de setembro de 1940, aos nove anos de idade publicou no jornal Terra Livre o primeiro texto, sobre as condições em que vivia um casal de camponeses na Fazenda Bonfim. Abandonou o curso de Direito no segundo ano e iniciou a carreira no jornal Folha de S.Paulo, na década de 1960.
Passou por grandes redações, como a do jornal Estado de S.Paulo, Jornal da Tarde, Quatro Rodas, Realidade, TV Globo, TV Cultura, TV Tupi e Caros Amigos, onde foi colunista e editor-executivo até 2009. Em 1975, com Narciso Kalili e Hamilton Almeida filho, escreveu uma reportagem icônica sobre a morte de Vladimir Herzog, com o título: “Liberdade, liberdade. Abre as asas sobre nós”. Escrevia a deliciosa coluna na revista Almanaque Brasil de Cultura Popular, junto de Katia Reinisch, sua companheira.
Em 2011, Myltainho deu entrevista para Dácio Nitrini, contando histórias sobre a equipe liderada por Sérgio de Sousa, que fez história com o jornal Ex e várias publicações do mainstream alternativo dos anos 70, como Bondinho, Photo Choq, Grilo e Extra. O traço comum: a pressão da censura e a perseguição policial.
Sobre seus livros, publicou “Se liga – o livro das drogas”, a “Biografia de João XXIII: Um Século de Boa Vida”, em parceria com Jorginho Guinle; “Paixão de João Antônio” (livro fundamental, pelo projeto e pela narrativa) e “Nascidos para perder – História do jornal da família que tentou tomar o poder pelo poder das palavras” (de revelações históricas). Colaborou na edição e feitura dos livros se seu amigo Palmério Dória, “Honoráveis Bandidos” e “O príncipe da privataria“. Juntos escreviam enquanto se divertiam.
Recentemente, lançou pela editora Insular, o livro “Realidade, a revista que virou lenda”. Ele narrou, nas primeiras páginas: “Há 47 anos, eu estava no Jornal da Tarde, lançado a 4 de janeiro de 1966, de onde me passaria meses depois para REALIDADE, lançada em abril. O JT sacudiu o jornalismo diário, pela diagramação e pela linguagem. REALIDADE foi mais fundo. Mexeu com as estruturas do ‘sistema’, desafiou os conservadores, os preconceituosos, quebrou tabus. E em plena ditadura militar. Neste momento, quase meio século depois, reflito sobre as perguntas que mais me fizeram os estudantes todos esses anos: por que não fazem mais uma revista como REALIDADE? Muitos abrem a boca de espanto quando digo que é porque a ditadura ainda não acabou”.
Tocador de acordeão, Myltainho ia lançar seu disco na metade deste mês de maio. Deixou três filhos e sua mulher.
Suas palavras
Conheci Mylton Severiano aos 20 anos. Estava escrevendo minha “monografia”. Entrevistei o mestre (clique aqui para ler). Hoje, aos quase 28, num mundo hiper-conectado, que tenta se reconhecer (mas permite a disseminação do discurso de ódio), deixo abaixo um poema de Wislawa Szymborska, escritora polonesa que Myltainho me fez admirar, que um dia ele me enviou por email para eu não desistir do jornalismo. Até mais, grande amigo!
A alegria de escrever, Wislawa Szymborska
Para onde corre este cervo escrito na floresta que escrevi?
É para beber da água escrita,
que desenha seu focinho?
Por que ele ergue a cabeça, escutou algo?
Apoiado nas quatro patas emprestadas da verdade
ele apura as orelhas sob meus dedos.
Silêncio — essa palavra ressoa na textura do papel
e afasta os galhos
que brotam da palavra floresta.
Sobre a folha em branco há letras espreitando
que podem tomar o mau caminho
formando frases ameaçadoras
das quais nada escapa.
Em cada gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho na mira,
prontos a descer pela caneta íngreme,
cercar o cervo e apontar as armas.
Eles esquecem que aqui não há vida de verdade.
No preto-e-branco vigem outras leis.
Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser
e poderá ser dividido em pequenas eternidades,
cada uma com chumbo suspenso em pleno vôo.
Aqui nada acontecerá sem meu aval.
Contra minha vontade, nem uma folha cairá
e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo.
Então existe um mundo
onde eu possa impor o destino?
Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais?
Uma existência que, a meu comando, não terá fim?
A alegria de escrever.
O poder de preservar.
Vingança de uma mão mortal.
(Tradução de Sylvio Fraga Neto e Danuta Haczynska)
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