“O importante não é escrever bem ou mal, mas transmitir o que vai no seu coração para o coração do leitor.” O norueguês Karl Ove Knausgard sabe bem do que está falando. Afinal ele escreveu mais de três mil páginas sobre si mesmo; e o fez com tal franqueza e talento que e é lido no mundo inteiro, tendo obtido excelentes críticas por toda parte. Sua série Minha Luta chega ao quarto livro no Brasil, Uma Temporada no Escuro. Dessa vez ele conta do período em que foi trabalhar como professor numa região afastada do país nórdico, aos 18 anos. O “romance de não ficção”, como chama, ainda trata das tentativas de perder a virgindade e de escrever os primeiros textos literários.
Kanusgard vive afastado do mundo, na pequena cidade de Skane, com a mulher, quatro filhos pequenos e um cachorro. Diz-se um homem de família que adora brincar com as crianças e cuidar do jardim, mas que às vezes quer desesperadamente ser outra pessoa ou fazer outra coisa. “Escrever é uma espécie de libertação para mim”, desabafa, um dia antes de sua mesa na Flip, que acontece nesta sexta, às 17h15.
Na entrevista coletiva, lotada de jornalistas, o grau de expectativa é grande. Alto, corpulento, mas elegante e gentil, com fala pausada, em que parece pesar cada palavra, ele responde a cada uma das perguntas com ar vagamente melancólico e alguns sorrisos. “Quando comecei, achei que o que eu escrevia era muito narcisista, que não ia interessar nem aos meus amigos. Mas aí vieram as respostas de leitores do mundo todo e as coisas passaram a fazer mais sentido.”
Não vê grande diferença entre os termos autobiografia e a chamada autoficção. Admirador de Proust, a quem é frequentemente comparado, Joyce e Flaubert, considera que, na autoficção, o autor pode se permitir falar longamente sobre mascar chiclete ou levar os filhos para uma festa, coisa que um político, ao escrever sobre sua vida, jamais faria. E que isso é o que faz a excelência de Em Busca do Tempo Perdido: “Proust escrevia sobre si mesmo, mas também sobre a cultura de sua época, a arte, a música.” Poderia-se acrescentar: os pequenos gestos.
Demorou meses para escrever as primeiras dez páginas de Minha Luta. Ficava polindo, tentando arduamente chegar ao ponto da “alta literatura”, com excesso, talvez, de autocrítica. E depois deslanchou, sem se preocupar com floreios, indo direto ao ponto: “Passei a escrever cinco páginas por dia, depois dez”. A simplicidade do estilo fez com que o editor lhe perguntasse se não queria tirar aquelas dez páginas iniciais, que estavam muito diferentes de tudo. Ao que respondeu, brincando: “De jeito nenhum, pelo menos as pessoas vão saber que sei escrever direito”.
Em 2010, Knausgard se juntou ao irmão e dois amigos e fundou o que chama de hobbie: a editora Pelikanen (Pelicano, provavelmente uma brincadeira com a Pelican inglesa). “Me entristece ver que as editoras norueguesas tenham se voltado mais para o lado comercial, por isso quis publicar livros de qualidade, de autores que gostamos.” Entre eles Ben Lerner e Maggie Nelson, jovens talentos da nova prosa americana. Conta que quis traduzir também Diário da Queda, do brasileiro Michel Laub, de que gostou muito, “mas pessoas mais poderosas compraram o livro antes de mim”, lamentou.
Recentemente escreveu um livro a quatro mãos com o amigo Fredrik Ekelund, Home and Away. Trata-se de um diálogo à distância – Ekelund vive no Brasil. “Somos diferentes em tudo: ele gosta de aproveitar a vida, de beber e dançar e da seleção brasileira; eu não saio, não danço e torço pela Argentina”, explica. O cenário para o livro foi a Copa do Mundo no Brasil em 2014. E o assunto não se limitou ao futebol – há digressões existenciais, políticas e literárias. Mas o futebol é central: “Sofri muito ao ver a Alemanha arrasar com o Brasil. Minha mulher até saiu da sala. Nunca tinha visto um time daquele nível ser atropelado daquele jeito, foi uma tragédia”, comenta, sem ironia.
O escritor também se estendeu sobre a crise na Europa e no mundo e a ascensão da direita. Lamentou o fenômeno Trump nos Estados Unidos e a saída do Reino Unido da União Europeia – “nem consegui acreditar”, disse. Curiosamente, a Noruega está fora da UE. “Sempre fomos independentes, e lá, ao contrário do Reino Unido, o argumento para estar fora é de esquerda”, explica. Mas lembra que, ainda assim, a Noruega recebe muitos imigrantes das regiões em conflito. “Na minha aldeia, que tem 200 pessoas, vamos receber 30 afegãos, o que está causando polêmica. Será muito interessante”, finaliza, com uma expressão que indica estar claramente feliz com o acolhimento dos refugiados.
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