Quando pensamos em palestras e conferências logo vem à cabeça uma situação monótona, engessada, onde pouquíssimos têm a palavra e muitos ouvem exaustivamente. Com a finalidade de romper com estes paradigmas do mundo intelectual e acadêmico, o cientista político Fernando Schüler criou, em 2006, o Seminário Internacional Fronteiras do Pensamento, que já trouxe ao País mais de oitenta intelectuais de todo o mundo, como o escritor Tom Wolfe, o cineasta David Lynch e político Daniel Cohn-Bendit.
Em entrevista à Brasileiros, Schüler contou que a ideia do Fronteiras é justamente democratizar o universo acadêmico, estabelecendo um contato mais próximo dos conferencistas com o público. “O Fronteiras trata de temas acadêmicos, mas a proposta dele é justamente a extroversão. É a possibilidade de um grande intelectual dialogar com um grande público.”, afirmou. O cientista político também comentou o momento político do Brasil e contrapôs a opinião pública em relação à crise econômica no País: “O Brasil não vive necessariamente uma crise, o Brasil vive um processo de apuração destes escândalos de corrupção e de consolidação da própria democracia, com um conflito político acirrado”.
Confira a entrevista com Fernando Schüler na íntegra:
Brasileiros – Como começou sua relação com os projetos culturais e de onde veio a inspiração para entrar neste meio?
Fernando Schüler: Eu sou de uma geração que viveu muito fortemente a abertura democrática nos anos 80, uma época de grande efervescência cultural, que foi chamada de década perdida com razão, o Brasil cresceu muito pouco, perdeu produtividade, viveu um processo de transição muito traumático, que por um lado deu certo e por outro deu errado. Por um lado se fez a democracia, e por outro teve a morte do Tancredo. Foi uma década paradoxal. O meu envolvimento com a cultura vem dos anos 80, desta efervescência política e cultural. A partir dali eu participei de diversas funções culturais, em geral ligadas ao governo, no nível estadual, municipal e federal. Isso me deu uma experiência muito boa. Foram nestes últimos anos que se criou uma política cultural no Brasil, se criou a Lei Rouanet, os incentivos estaduais, o próprio Ministério da Cultura. O Brasil é um país jovem nesta área, mas vem fazendo um esforço grande para crescer, com acertos e erros. Foi desenvolvida uma malha de projetos culturais no Brasil. Em São Paulo se tem uma malha grande de organizações sociais voltadas à cultura. Passei a trabalhar também com o setor privado de cultura, já que houve um grande investimento neste período. Não se faz cultura sem projetos de longo prazo, sem uma visão de País. Um dos projetos que desenvolvemos, em parceria com a Braskem, e também com esse intuito de investir de forma maciça na cultura, foi o Fronteiras do Pensamento. Surgiu em 2006 em Porto Alegre e nosso primeiro convidado foi o historiador Paul Kennedy. Posteriormente nós estabelecemos uma temporada anual que se estendeu para São Paulo. O Fronteiras é um filho da vida cultural de Porto Alegre, que é uma vida muito intensa. É um projeto que se adaptou bem a várias regiões do Brasil, em Salvador, Florianópolis, com escalas diferentes.
Mesmo com estes projetos que crescem muito, o Brasil ainda vive um déficit de cultura?
Certamente. O Fronteiras do Pensamento depende muito pouco da Lei Rouanet, é um caso diferente da média das projetos culturais. A própria lei se tornou um mecanismo muito engessado. A burocracia do estado tende naturalmente a crescer, independente do governo. Em muitos países do mundo os incentivos à cultura e à própria filantropia são muito menos burocráticos que no Brasil. É inconcebível que, para você contribuir ou ajudar um projeto cultural, precise mandar a ideia para Brasília para ser votada e aprovada,passando por diversas análises e prestações de conta. Muitas vezes as pessoas que formulam essa legislação não têm ideia dos custos que as organizações culturais têm de pagar por essa burocracia. São empresas pequenas, com pouca estrutura. Um dos grandes desafios da política de cultura brasileira é a desburocratização. Há muito que fazer uma reforma na gestão das instituições culturais. Penso que o modelo das Organizações Sociais é uma inovação importante. Você vê a diferença que se produziu a partir das conversões da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo)e a da Pinacoteca em Organizações Sociais. São modelos mais flexíveis que envolvem mais o terceiro setor, então acho que eles produzem um dinamismo especial. O Brasil hoje é um país conectado internacionalmente e tem uma cena cultural pujante.
A ideia do Fronteiras do Pensamento é, de certa forma, ampliar e democratizar o debate acadêmico?
O Fronteiras funciona como uma espécie de convite à imaginação. O que nós pedimos aos palestrantes é que eles estabeleçam um diálogo com o público de forma até pessoal. Estava conversando com o Richard Dawkins (biólogo que abriu a temporada 2015) antes da palestra e dizia à ele: ‘o fronteiras trata de temas acadêmicos, mas a proposta dele é justamente a extroversão’. É a possibilidade de um grande intelectual dialogar com um grande público. Você percebe que o público que vai é um público muito qualificado, mas não é de especialistas e nem de acadêmicos. Eu diria que ninguém aprende e ninguém conhece a obra de um grande pensador assistindo uma palestra. Uma palestra pode ser uma culminância de um processo de aprendizado, que você estuda e lê a obra de um autor e, a partir disso, você vai à palestra dele interagir. Ou pode ser também o contrário, o início de uma conversa com a obra do autor. A grande sacada do Fronteiras, é aproximar, desmitificar o pensamento. Isso foi uma grande contribuição da internet, onde temos acesso aos pensadores do mundo inteiro. A conferência é também um momento onde o intelectual se fragiliza, ele sai da sua zona de conforto acadêmica, onde está geralmente sentado e falando para uma plateia pequena. No Fronteiras ele está de peito aberto, tem o desafio de comunicar de outra maneira. Há uma série de desafios, tanto para o lado do acadêmico quanto para o lado do público, e cada conferência é uma grata surpresa.
Vivemos uma época de intolerância – religiosa, política, moral – no Brasil. O Fronteiras, trazendo intelectuais de diferentes vertentes ideológicas, contribui para ajudar as pessoas a aceitar um pensamento diferente?
O mundo intelectual está em um processo de radicalização, muito em função da internet, mas não apenas. A internet torna visível o que já estava no coração das pessoas, ela cria um sentido de urgência na comunicação. Você lê mais, escuta mais, assiste mais. As redes sociais têm um elemento comunitário, você recebe a informação sobre o que pensam todos os seus amigos em tempo real. Você jamais imaginava que aquele amigo seu, que você nutre uma grande simpatia, que você admira, não só votou no candidato que não é o seu, como considera o seu candidato um bandido. É um teste para nossa capacidade de tolerar. Como diria o sociólogo Richard Sennett, ‘o meu convite é que nós sejamos menos enfáticos’. O Sennett tem ótimas reflexões e uma delas é a de porque não utilizarmos mais o subjuntivo. Ao invés de falar ‘você errou’ você pode falar ‘quem sabe isso não possa ser diferente’. O ‘talvez’ estabelece um caminho para o diálogo. Eu atuo na vida intelectual, escrevo artigos e é impressionante o nível de agressividade das pessoas e em grande medida não são produzidas por pensamentos diferentes e sim por problemas pessoais. Vaidade, anonimato, a sedução da agressão que tem até um sentido meio bárbaro. Um certo prazer mórbido na humilhação dos outros. A internet criou uma espécie de nova barbárie. Portanto o Fronteiras tem sim a ideia de testar a nossa intolerância e não é à toa que convidamos o Richard Dawkins para abrir a temporada. Ele é provocativo, um crítico da religião. Não é um cientista disposto a fazer muitas concessões. O mundo das ideias pode ser um ponto de encontro, não só um ponto de divergência. A forma como você diverge que define se um diálogo será aberto.
O senhor já foi diretor da Fundação Iberê Camargo e o Brasil é uma grande potência nas Artes Visuais. Mesmo assim a população jovem ainda se interessa pouco por este tipo de assunto. A que se deve esse fenômeno?
Boa parte desta responsabilidade é das instituições. Tivemos um acontecimento fundamental recentemente que foi a criação do Inhotim, que, em termos nacionais, é uma grande evolução em como a arte é apresentada na sua relação com a natureza. Os museus tradicionais, que oferecem poucas alternativas em outras formas de se interagir com as obras, até em termos de tecnologia, estão realmente condenados a um afastamento dessa nova geração. Com exceção de pouquíssimos museus, as instituições não atraem o público turístico. Você vê ao redor do mundo que os museus como Louvre e Van Gogh têm um brutal fluxo turístico. Os museus brasileiros que não se empenham neste público precisam achar um novo meio de interagir com a comunidade. Há, de fato, uma tensão entre o tempo da tecnologia e o tempo da arte, o tempo do smartphone e o tempo da observação de uma obra. Imaginar que um jovem de 18 anos hoje vai ter a mesma relação com a arte que um jovem de 30, 40 anos atrás tinha é inimaginável.
Os próprios métodos de educação ficaram obsoletos? Como o senhor disse, o tempo da arte não acompanhou o tempo dos smartphones. E a sala de aula acompanhou?
Vejo um esforço grande no Brasil, em diversos níveis, de mudanças nos modelos pedagógicos. A velha relação professor/aluno, com o aluno escutando e o professor ensinando, supondo que tem autoridade, está morta. Hoje se fala na educação centrada no aluno. Ela precisa envolver o aluno no fazer. O professor não consegue manter a atenção por tanto tempo. É difícil disputar atenção com celulares e computadores. A educação necessariamente precisa adquirir um elemento socrático, baseado no diálogo e na descoberta. O professor tem que oferecer muito mais descobertas do que conteúdos programados, prontos e acabados.
Em sua entrevista concedida no programa do Jô Soares o senhor afirmou que sente os intelectuais muito pessimistas quando vêm ao Fronteiras. O País também vive um momento cerceado pelo pessimismo. De onde surge esta perspectiva negativa?
Existe uma explicação para este pessimismo que é o chamado fenômeno Breaking News. Me lembrei disso quando assisti a um jornal noturno recentemente. Estava passando uma notícia de um incêndio em um asilo na China. Eu imediatamente imaginei minha mãe, de 82 anos, assistindo esta notícia e dizendo ‘está muito perigoso ir para a China’. Nós temos uma brutal carga de informação e passamos a ler as coisas a partir do mundo virtual. Atualmente parece que o mundo virtual superou o real, nós acreditamos mais no meios de comunicação do que na própria realidade. Se formos à Avenida Paulista e perguntarmos para 100 pessoas o que elas pensam sobre a violência, a grande maioria vai dizer que está aumentando. Só que se lermos o mundo de forma mais cética, a partir da estatística, a violência está diminuindo. Todas as pesquisas dizem isso. Boa parte da mídia tem interesse apenas na venda do espetáculo.
Quais são suas perspectivas futuras para o País?
O Brasil vive o que os economistas chamam de armadilha da renda média. Nós conseguimos diminuir significativamente a pobreza na última década e a renda aumentou muito. Os mais pobres se desenvolveram muito mais que os ricos, resultando em uma diminuição da desigualdade, não só no Brasil, como na América Latina inteira. Mas, de alguma forma, este processo foi estancado. A miséria no Brasil voltou a crescer, houve um esgotamento de um modelo baseado na exploração do consumo que resultou no endividamento das famílias. O Brasil ganhou muita produtividade com a universalização do ensino fundamental, agora o desafio é passar da quantidade para a qualidade. A agenda de reformas que o Brasil precisa organizar é mais ou menos conhecida, a questão é ter coragem de implementar essa agenda. Por mais que o País tenha passado por vários desafios, é importante que nossa democracia esteja passando por esse teste.
Deixe um comentário