O calor da dança na temporada de inverno londrina

O Tanztheater Wuppertal Pina Bausch vai ao Sandler's Wells, em Londers, para apresentar Masurca Fogo. Foto: Divulgação/Sanderl's Wells
Em 2017, o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch vai ao Sandler’s Wells, em Londres, para apresentar Masurca Fogo, de 9 a 12 de fevereiro. Foto: Divulgação/Sanderl’s Wells

  
A santíssima trindade da dança em Londres pode ser, ainda que de forma muito simples, categorizada como showbiz, tradicional e experimental.

Se, no entanto, debruçarmos os cotovelos nos camarotes do Coliseum, da Royal Opera House e da Sadler’s Wells e prestarmos a devida atenção, é possível ver tentativas de rompimentos com as reputações estabelecidas. Particularmente, nesta temporada, o Royal Ballet abre espaço para dança contemporânea estrelada pelo elenco da casa e com coreografias de Wayne McGregor.  Uma aposta triunfante do diretor Kevin O’Hare de diversificar sem abrir mão da altíssima qualidade e renome artísticos há muito estabelecidos na casa.

Mas sempre haverá a tradição, especialmente em Londres onde o Quebra-nozes e A Bela adormecida do final de de todo ano reúnem famílias vindas de todos os cantos da ilha, envoltos em seus cachecóis e gorros, para apreciar as produções tão grandiosas quanto caras. Dessa forma, Sadler’s Wells acaba por proporcionar um certo frescor alternativo ao hábito, infelizmente e ainda, bastante elitista que é a assiduidade ao balé.

O rompimento com tradições acompanha a história de Sadler’s Wells, o segundo teatro mais antigo de Londres, desde sua fundação no século 17.  Improviso e reinvenção são parte desse incrível centro de dança que era pra ser apenas uma casa de diversão para quem frequentasse as fontes de águas minerais do local (“wells” em inglês quer dizer fonte de águas), oferecendo um palco para entretenimento de todas as sortes como malabaristas, patos que cantavam, cachorros que dançavam e lutadores.

Depois de resistir bravamente à expansão do cenário artístico no centro de Londres com a demolição de vários prédios antigos e a construção de outros novos, às demandas de modas da sociedade através dos séculos e permanecer fechado durante alguns períodos como o da Segunda Guerra, Sadler’s Wells vem há onze anos se destacando ironicamente por uma única oferta ao seu público: a variedade das produções.

Desde 2005, quando o diretor artístico da casa, Alistair Spalding, anunciou que Sadler’s Wells se destacaria pela mistura de culturas, etnias, estilos e coreografias na dança, o teatro vem, de fato, oferecendo um programa de inquestionável diversidade, e esta temporada não é exceção.

Uma das coreografias mais aguardadas é a adaptação para o balé clássico da famosa ópera chinesa O pavilhão das peônias (The peony pavillion). No seu formato original, a ópera do século dezesseis, leva vinte horas para se desenrolar. Versões mais curtas já foram feitas e adaptadas, inclusive para o próprio formato operístico. Na dança, o Balé Nacional da China propõe e encanta com um espetáculo de apenas dois intervalos nesta temporada do Sadler’s Wells.

Mas, se o English National Ballet e o Royal Ballet ensaiam e apresentam suas próprias produções com o elenco da casa, a proposta atual do Sadler’s Wells é exatamente oposta: é abrigar a diversidade e o frescor de espetáculos do mundo durante temporadas curtíssimas de três, quatro dias até, no máximo, uma semana. A exceção seria o já estabelecido Festival de Flamenco que abriga os melhores e mais passionais corpos de baile da Andaluzia por duas semanas em fevereiro. O próximo festival conta com o inovador Israel Galván que pretende desafiar e desconstruir técnicas tradicionais em mesclas contemporâneas. Israel já se apresentou no Sadler’s Wells em 2011 e apesar do relativo status de celebridade, ainda pode ser visto em Sevilha em tablados tradicionais da capital Andaluza.

Talvez um dos melhores espetáculos preparados pela Sadler’s Wells nesta temporada seja a volta de Pina Bausch e seu Masurca Fogo com os bailarinos do Tanztheater Wuppertal, apresentado pela última vez em Londres em 2002. Naquela ocasião, a coreografia de Bausch foi justa à pretensão artística da coreógrafa. Ela dizia que seu êxito era causar desconforto, espanto com sua arte. Minha leitura há mais de dez anos foi de mal estar, apesar da estarrecedora beleza e do comprometimento dos bailarinos com suas tentativas tão vivas e pulsantes de expressão.

Bausch, que morreu em 2009, criou Masurca Fogo com características passionais, disformes, aparentemente descontroladas. Mas só aparentemente. Assim como na literatura, criar o simples é penosamente complicado e a precisão, a arte enxuta são grandes desafios. Não há subterfúgio. A técnica precisa ser refinada, o tempo deve ser exato. Não há espaço para errar, para sobrar. A nudez é exposta. A vulnerabilidade é identificável e facilmente apontada. Ainda assim, nessa produção, a coreógrafa alemã que ficou conhecida no mundo através de trabalhos extraordinários como A Sagração da Primavera,  Cravos e Água disse estabelecer um flerte com o erro e a intuição, dando ao bailarino a liberdade de sentir a coreografia cada dia de um jeito, trazendo frescor não só aos dançarinos, mas à obra e ao público. Em entrevistas, Pina Bausch dizia nunca subestimar seus bailarinos, e sua confiança na técnica e intuição de cada um resultava numa entrega que invariavelmente abriga comoção e precisão em cada genial coreografia deixada por ela.

Em fevereiro, Masurca Fogo retorna ao Sadler’s Wells com a composição cênica teatral de uma Lisboa de 1989, com elementos sofisticados, sensações e formas. A essência de Bausch na sua dramaticidade encontra em Masurca Fogo as profundezas humanas doídas e celebradas por todo o corpo, como, por exemplo,  a inesquecível passagem da respiração alta da bailarina num microfone, carregada por dançarinos como se uivasse, sofresse pela garganta pequenos urros que refletem as comédias e tragédias das relações humanas.

Mesmo que aparentemente desconexos, são atos de dança que, feito ilhas, são inteiros, completos e belíssimos em si próprios. São colagens, pedaços que proporcionam a projeção ampla da coreografia e suas infinitas possibilidades para quem se propõe a sentir a dança ao invés de limitar-se a vê-la. Nesse espetáculo, mais uma vez, a universalidade das obras de Bausch vem das relações humanas. Processo sedutor e intrigante feito a vida que imita arte que recorre à vida, ininterruptamente feito uma coreografia bem executada.

*Nara Vidal é jornalista, escritora e mora em Londres


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