“Ao reunir suas composições, Moacir Santos criou, mais do que um disco, um documento histórico autêntico dentro do mapa da música popular brasileira. Autêntico, pois se trata de um músico negro escrevendo música negra e não de um garoto de Ipanema contando as tristezas da favela ou de um carioca que nunca foi além de Petrópolis a enriquecer o cancioneiro nordestino. Este disco é negro desde a capa até o vinilite, do músico ao som que se ouve.”
Quem passa tamanho recibo ao maestro Moacir Santos é Roberto Quartin, jovem produtor carioca, fundador, ao lado do amigo Wadih Gebara, do lendário selo Forma, que lançou em 1965 o primeiro álbum autoral de Moacir como compositor. Longe de, tão simplesmente, querer defender seu peixe no texto de apresentação do álbum, Quartin foi preciso ao afirmar que Coisas, o LP em questão, foi mesmo um divisor para a música popular instrumental brasileira. Sobre ele, em artigo de 2005, o historiador Zuza Homem de Mello sentenciou: “É o mais desconcertante disco instrumental dos anos 1960. É natural que suas consequências ficassem para muito depois. Na obra do maestro o primitivo encontra o futuro. O ontem, o amanhã”.
Como vimos em Quintessência, que chega, hoje, ao final de sua trajetória com a resenha deste 50° álbum, os anos 1960 foram território temporal absolutamente fértil para a música instrumental popular do País. Mas o que fez, então, de Coisas álbum tão distinto na discografia brasileira da segunda metade do século 20, como defendeu Zuza?! Claro, para além da audição que não deixa dúvidas, não há uma simples resposta para o fenômeno. Tampouco a coisa se explica na dicotomia entre Bossa-Nova e canção de protesto sugerida na aspa de Quartin. Uma convergência de fatos da trajetória pessoal e musical de Moacir permitiu a ele atingir tão elevado grau de sofisticação, modernidade e competência autoral. Um caminho de retidão, altivez e entrega à música, predicados também celebrados pelo chefão da Forma, na apresentação de seu contratado. “Moacir confere dignidade a tudo que escreve. É um músico que vai às raízes. Não sei até hoje se Moacir é de extrema esquerda ou extrema direita, mas sei que ele é de extrema musicalidade”.
Nascido em trânsito, na cidade de Bom Nome, no interior de Pernambuco, Moacir José dos Santos, e seus quatro irmãos (três meninas e um menino), ficaram órfãos da mãe, Julita, aos três anos de idade. Assim que nasceu Moacir, o pai, José, fugiu do seio familiar e aderiu à força volante que empreendia uma caçada ostensiva ao bando de Lampião. Entregues a própria sorte, os cinco irmãos foram adotados por diversas famílias da cidade de Flores do Pajeú, no agreste pernambucano. Em princípio, a guarda de Moacir ficou sobre a responsabilidade de sua madrinha Corina, mas logo o menino foi tutelado pela família Lúcio, ao cuidados de Ana, moça solteira que ingressou Moacir na escola e permitiu que ele tivesse desde os 9 anos de idade proximidade com a Banda Municipal de Flores do Pajeú. Em pouco tempo, nos intervalos dos ensaios, Moacir foi aprendendo, um a um, os instrumentos utilizados pela banda. Aos 10 anos, autodidata, ele já se aventurava em diversos instrumentos, como trompa, saxofone, percussão, clarineta, violão, banjo e bandolim. Tamanha vocação foi lapidada, pouco depois, com alguns professores locais, como Luís de Ginú, Antenor, da vizinha Afogados de Ingazeira, Severino Rufino, Alfredo Manoel da Paixão e Luiz Benjamin, os dois últimos militares da Brigada de Pernambuco.
Embora a família Lúcio tenha garantido a Moacir uma boa formação, cada vez mais ele se dava conta de que, no fundo, não passava de espécie de escravo da família, tendo de lidar diariamente com contingências pesadas para uma criança, como ir buscar água no rio, trabalhar no roçado, cuidar do consumo de lenha da casa e tratar dos porcos da família. Aos 14 anos, gozando do prestígio local em apresentações musicais como o “Neguinho de Flores”, Moacir tomou a decisão de fugir de casa e peregrinar por várias cidades do sertão nordestino. Seu primeiro destino foi a cidade de Alagoa do Monteiro, na Paraíba. Pouco depois, ele partiu para Rio Branco, atual Arcoverde, em Pernambuco. Por capricho do acaso – ou do destino, diriam alguns – em Rio Branco Moacir reencontrou seu mestre Alfredo Manoel da Paixão, que o acolheu como a um filho e ingressou o adolescente em sua banda.
Em seguida, Paixão levou Moacir para Recife, cidade que o deixou fascinado, mas a estadia também foi breve. Poucos meses depois, ele foi parar em Serra Talhada, também no sertão pernambucano. A passagem pela cidade rendeu a Moacir o ingresso na Filarmônica Vilabelense e também o fez ter maior proximidade com o jazz americano, pois o mestre da orquestra, o sargento Luiz Benjamin, era também líder da jazz-band local. Ainda em Serra Talhada, por recomendação de Benjamin, Moacir fez também alguns trabalhos para o Circo Farranha. Em uma apresentação a qual chegou atrasado, Moacir foi repreendido pelo sargento com um empurrão. Ofendido com a intolerância de Benjamin, ele foi narrar o episódio ao dono do circo e, ironicamente, acabou sendo contratado como diretor musical. Seguindo a itinerância do Farranha, Moacir cruzou diversas cidades do agreste pernambucano, entre elas, Salgueiro, Bodocó, Ouricuri, Serrinha e Bonfim. Quando o circo aportou na Bahia, um episódio fútil foi o estopim de mais uma fuga de Moacir. Incumbido de observar o perímetro para evitar que pessoas invadissem a lona do circo sem pagar ingresso, ele não se deu conta de que todos os funcionários haviam sido intimados a uma força-tarefa para reunir candeeiros, pois havia faltado energia elétrica, o que inviabilizaria o espetáculo. Moacir foi repreendido por não ter colaborado com a tarefa e, considerando a repreensão injusta, uma vez que estava no cumprimento de sua contingência, ele decidiu partir para Salvador. Na capital baiana, recomendado por um amigo do circo, Moacir conseguiu emprego de entregador de pães. Dias depois, quando voltava para casa de bonde, ele topou com um grupo de músicos e pediu para mostrar a eles seus dotes no saxofone, tomando emprestado o instrumento de um deles que, encantado com o que ouviu, recomendou a Moacir que fizesse um teste na Banda da Polícia Militar, expectativa que o fez abandonar por dias o trabalho na padaria e acabou por não se concretizar, por ele ser menor de idade. O episódio fez com que Moacir dormisse na rua por várias noites e enfrentasse fome. Ele pretendia voltar para Recife, mas acabou parando, de carona, na cidade de Crato, no Ceará. Pouco depois, o andarilho já estava em Pesqueira, passou por Gravatá e retornou ao Recife no início de 1943, aonde foi contratado para integrar o elenco do programa Vitrine, da Rádio Clube de Pernambuco, sob o codinome artístico de “O Saxofonista Negro”. Mas o ingresso em um ofício formal como artista não rendeu a Moacir o conforto que ele tanto carecia. No breve período em que atuou na rádio, seu rendimento mais valioso foi um saxofone tenor, novinho em folha, que ganhou da rádio. Vendo pouco futuro na emissora, Moacir tentou ingressar na banda da Aeronáutica de Pernambuco, mas foi reprovado com a justificativa de que, apesar de seus dotes inquestionáveis, a banda já estava formada. Dias depois, ele soube que a banda sequer tinha contratado um terço dos músicos e que estes eram brancos. A evidência de que havia sido, mais uma vez, vítima de racismo fez Moacir desgostoso e, aos 17 anos, novamente foi ele peregrinar, desta vez com destino a Timbaúba, na zona da mata pernambucana. Na cidade, além de ingressar na Banda Pé de Cará, Moacir também trabalhou em uma fábrica de calçados. Uma costura mal feita e uma bronca rigorosa foram suficientes para fazê-lo voltar ao Recife. Pouco depois, ele seguiu para João Pessoa, na Paraíba, onde cumpriu serviço militar, com idade presumida de 18 anos, pois ele não sabia ao certo o dia e o ano em que nasceu.
No exército, claro, Moacir logo foi acolhido pela banda marcial. Depois de quase um ano e meio de cumprimento de serviços, Moacir foi liberado do serviço militar para poder ingressar na Rádio Tabajara da Paraíba, como saxofonista solista. Em João Pessoa, ele conheceu também o grande amor de sua vida, sua futura mulher, pelas seis décadas seguintes, Cleonice Santos.
Seis meses depois de casados, Moacir e Cleonice decidiram tentar a vida no Rio de Janeiro, no início de 1948. “Enquanto o prático não vinha, fiquei admirando a vista do Rio do navio. Tive a impressão de estar num conto de fadas, numa cidade lendária feita de caixas brancas de fósforos, uma coisa que eu jamais tinha visto, como um sonho”, relatou ele em depoimento biográfico feito ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1992. Recomendado por políticos paraibanos, Moacir ingressou no final de 1948 na Rádio Nacional, na qual foi o primeiro e único maestro negro. Ao ser indagado pela direção da emissora como havia sido o teste feito com o jovem pernambucano, maestro Chiquinho definiu: “O teste foi para nós, senhor diretor. Colocamos umas músicas para o rapaz e ele tocou tudo. Entretanto, ele colocou umas músicas para nós e nós não as tocamos”.
Em abril de 1949 nasceu o filho único do casal, Moacir Santos Jr. Aos 23 anos decidido a mergulhar nos estudos de regência, Moacir ingressou no curso do maestro César Guerra-Peixe, um dos mais importantes do País. Pouco depois, desenvolvendo uma formação multidisciplinar – piano, orquestração, harmonia, história da música e contraponto – Moacir também teve como mestre o maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter, precursor do dodecafonismo no Brasil. Em três anos, e não em cinco, como era previsto, Moacir atingiu excelência em todas as disciplinas. Entre 1954 e 1956, ele atuou como diretor artístico da TV Record em São Paulo, retornando depois ao Rio de Janeiro, quando trabalhou como assistente de Ari Barroso nas gravadoras Rozenblit e Copacabana.
Na virada dos anos 1950 para os 1960, Moacir passou a atuar como professor. Entre seus alunos, ninguém menos que: Nara Leão, João Donato, Paulo Moura, Baden Powell, Roberto Menescal, Geraldo Vespar, Oscar Castro Neves. Dom Um Romão, Flora Purim, Airto Moreira, Maurício Einhorn, Raul de Souza e Sergio Mendes.
Sobre ele, e suas primeiras composições, Baden relatou: “Era um professor sensacional, meio metafísico, explicava a harmonia, os intervalos entre as notas, as dissonâncias, usando como exemplo as estrelas. Fui estudar com ele essas sabedorias, ficamos muito amigos, e por causa dessa amizade ele começou me mostrar as composições que fazia no piano e não mostrava para ninguém. Tocava para mim as músicas e dizia: ‘Olha essa coisa que eu fiz, escuta essa outra coisa’. As composições não tinham nome, foi então que ele resolveu batizá-las de ‘Coisa n° 1’, Coisa n° 2’”.
No intervalo entre a composição dos temas e o registro do álbum Coisas, Moacir compôs as trilhas sonoras dos filmes Ganga Zumba e A Grande Cidade, de Cacá Diegues, O Santo Módico, de Sacha Gordine, Os Fuzis, de Ruy Guerra, O Beijo, de Flávio Tambellini e Seara Vermelha, de Alberto D’Aversa. A trilha de Ganga Zumba preconiza elementos estéticos de Coisas e traz, inclusive, os temas Coisa n° 4, Coisa n° 9 e Nanã.
Pouco antes de entrar em estúdio para o registro de Coisas, Moacir foi convidado a fazer alguns arranjos do álbum É Samba Novo, do baterista Edison Machado, ícone do samba-jazz, egresso do Bossa Três de Luiz Carlos Vinhas. Um dos temas escolhidos pelo baterista foi Nanã, de Moacir. Ignorando o fato do próprio autor estar escrevendo o arranjo para o tema, Edison, sem papas na língua, pediu ao maestro para reescrever a orquestração que, no seu ponto de vista, estava muito previsível e comercial. A resposta foi tão explosiva, com um arranjo que trazia um solo arrebatador de Raul de Souza, e revigorava a força polirrítmica de Edison, que o tema acabou se tornando abertura do álbum. O LP antecipou também outro tema de Coisas, Coisa nº 1, com arranjo de Paulo Moura.
Em manuscritos que seriam fonte para uma autobiografia não concretizada, revelados na recém-lançada biografia Moacir Santos, ou os Caminhos de Um Músico Brasileiro, de Andrea Ernest Dias, Moacir deixou registrado quais eram suas intenções enquanto compositor: “Procuro dar-lhes (às composições) caráter essencialmente moderno, bem atual. Espero criar algo absolutamente pessoal – e para isso estou dando o melhor dos meus esforços. Esforços de quem quer vencer, criar. Eu sou um africano nascido no Brasil. Há 500 anos, eu fui trazido para o Brasil nos genes de meus ancestrais. Sonho em fazer minha música para um aspecto que não se enquadra na poética popular do ‘pintar um quadro diferente’. Na música popular o ritmo é constante, é uma diferença. Eu sinto a falta, quando estou embrenhado em música sinfônica, sinto falta daquele ritmo que é o meu berço. Vou ter que achar um jeito de que os instrumentos façam minha percussão, que eu fique satisfeito. Pois bem, esse é meu sonho não realizado.”
A realização do sonho de Moacir deu-se dez anos depois desse depoimento com a chegada ao mercado de Coisas. Embora o álbum não tenha obtido êxito comercial, o reconhecimento artístico veio a contento. Com seu primeiro álbum, Moacir deixou atônita toda uma geração de grandes instrumentistas brasileiros que, à despeito da excelência em linguagens modernas como o samba-jazz, jamais haviam amalgamado tantos elementos diversos como o jazz, o samba, o maracatu, o coco, o xaxado, com tradições da diáspora africana que se fizeram perpetuar em ancestrais brasileiros. Como afirmou Roberto Quartin, trata-se de um álbum negro desde a capa, que dialoga com o legado escrito em décadas anteriores por outros gênios como Pixinguinha e o maestro Abigail Moura, da Orquestra Afro-Brasileira.
Pouco depois do lançamento de Coisas, também chegou ao mercado, via Elenco, o LP Vinicius de Moraes & Baden Powell, no qual o Poetinha prestou singela homenagem a Moacir em Samba da Benção: “A benção, maestro Moacir Santos, que não és um só, és tantos, como o meu Brasil de todos os santos, inclusive meu São Sebastião.” A menção, clichê, caro leitor, é para concluir esse texto e afirmar que depois de Coisas, Moacir partiu em 1967 para os Estados Unidos e por lá foi ainda mais cultuado tendo, inclusive, feito parte do elenco de gravadoras históricas, como a Blue Note, celeiro dos maiores jazzistas do mundo, no qual gravou, por recomendação de Horace Silver, três álbuns autorais, Maestro (1972), Saudade (1974) e Carnival of the Spirits (1975). Vale conferir essa história, aliás, muito bem reconstituída na biografia de Andrea Ernest Dias.
Chegamos, enfim, ao ponto final da coluna Quintessência, que prestou reverência a 50 álbuns históricos da música brasileira produzida entre os anos de 1960 e 1980. Foi um prazer tê-los conosco nessa jornada. Para fins de pesquisa, o conteúdo das 50 resenhas e perfis biográficos permanecerão hospedados no portal da Brasileiros.
Ouça a íntegra de Coisas
Aproveito o ensejo para convidá-los para a festa que será realizada hoje, no espaço Mundo Pensante, em São Paulo, na qual irei celebrar o fim dessa maratona discotecando na festa Calefação Tropicaos: Quintessência. Confira os detalhes.
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